Incerto Amanhã






Capítulo I

A festa acontecia nos jardins do castelo da sra. Leighton-Forbes. Naquele grupo de pessoas elegantes ouvia-se toda a sorte de mexericos sobre a sociedade, incluindo o último escândalo sobre Sir Geoffrey e seu recente caso, bem como o próximo casamento de Alastair Veltrovers com a riquíssima Lavínia Jarrow. Muitos eram os cumprimentos e sorrisos dirigidos à bela Julie Veltrovers, prima de Alastair e criada por seu tio. Respondia com fria dignidade a toda aquela adulação, tomando-se natural quando Lavínia se aproximou com Cheryl, uma de suas inúmeras amigas, para arrastá-la um tanto a contragosto para a tenda da cigana. Todos os anos, a sra. Leighton-Forbes dava sua festa e sempre providenciava uma cigana para divertir os convidados. As três tiravam a sorte com uma moeda para ver quem entraria primeiro e Cheryl ganhou.
– Ela não é muito boa – disse, saindo da tenda cinco minutos depois –, não me disse nada de mais. Só que brevemente farei uma viagem e mais algumas coisas que as ciganas geralmente falam. Não sei de onde ela é, mas seu inglês é péssimo.
– Péssimo? – perguntou Lavínia sem compreender.
– Muito errado.
Nesse momento os expressivos olhos cinzentos de Julie se fixaram no cartaz da tenda, onde se lia o convite: “Entre e saiba tudo sobre o seu futuro”.
– Posso ser a seguinte? – Lavínia estava agitada e impaciente. Um suave sorriso aflorou nos lábios de Julie que concordou. Lavínia ainda disse com os olhos brilhando:
– Ficarei arrepiada se ela me falar sobre Alastair!
– Como está apaixonada essa garota! – disse Julie, sacudindo suavemente a cabeça de cabelos dourados. – Imagino se meu primo se dá conta de como é fácil ferir Lavínia...
Cheryl deu de ombros, não fez comentário. Ficaram conversando sobre outras coisas, até que Lavínia voltou. Seu rosto revelava desapontamento.
– Nada! – disse ela desgostosa. – Acho que essa cigana é uma perfeita vigarista!
Julie voltou a olhar o cartaz sobre a tenda.
– Nesse caso, não vou desperdiçar meu dinheiro! – decidiu, voltando-se para ir embora.
– Ora, vá; Julie – pediu Lavínia impulsivamente, sua jovem face radiosa e feliz. – É tudo brincadeira. Além disso, ela pode lhe dizer algo de interessante.
– Dificilmente, pois ela não diria a outros o que disse a você – retrucou Julie secamente.
– Tenha espírito esportivo – disse Cheryl sorrindo –, eu sempre vou a essas tendas; são divertidas e excitantes.
Rindo e abrindo as cortinas, Julie entrou na diminuta e mal iluminada tenda. Uns olhos negros numa face morena ficaram alerta, fixando-a diretamente, examinando-a. Julie estranhou. A mulher tinha toda a aparência de cigana, no entanto...
– Por favor, sente-se.
Depois de examinar alguma coisa que estava em seus joelhos, a mulher novamente olhou para Julie. Por alguma inexplicável razão, teve a impressão de que era uma fotografia o que a mulher tinha no colo, mas estava escondida sob a mesa onde se via uma bola de cristal, na qual a atenção da cigana se prendia no momento. A cigana usava inúmeras pulseiras de ouro e três anéis. Julie reparou num deles em particular. Era um anel de sinete, com a cabeça de Zeus. A mulher seria grega? Concluiu que sim.
– Você tem quase dezenove anos – disse, fixando a bola de cristal, onde, Julie tinha certeza, ela nada podia ver –, dezenove anos e esperando fazer um casamento muito vantajoso – as palavras eram articuladas com grande dificuldade, mas Julie conseguiu entendê-las.
A cigana moveu os joelhos e Julie viu neles uma revista, a Country Gazette. Então era uma fotografia o que a cigana estava olhando! Fascinada, reconheceu a revista, sabia que era um número de uns três meses atrás. Nesse número havia não somente a reportagem do noivado de Alastair,como também uma fotografia sua, a cavalo, recebendo uma taça de prata na gincana do condado. Essa foto era excelente, pois o fotógrafo havia captado não só todos os delicados detalhes do rosto, como também sua expressão aristocrática. Essa combinação havia resultado no que o próprio repórter chamava de uma de suas obras-primas. Era uma espécie de retrato arrebatador, magnético, para o qual não se podia olhar só uma vez.
– Não estou noiva. – A voz de Julie soou calma e fria, apesar de seu atordoamento.
Era óbvio que qualquer mocinha numa festa daquelas estava na expectativa de um bom casamento.
– Não está noiva, mas, digamos, enamorada... de um jovem que poderá eventualmente se tomar herdeiro de uma das maiores fortunas do país.
Julie permaneceu calada, relembrando a legenda da foto: “... observando Julie receber o seu prêmio, está o sr. Edward Holmes-Furbishley. Houve recentemente rumores de um provável noivado...”
– Mas, minha querida... – a cigana continuava falando da melhor maneira que podia – esse homem não é para você. Nem ele, nem nenhum outro homem daqui... – os olhos negros se elevaram da bola de cristal para o rosto de Julie – seu destino foi traçado dez anos atrás, e você deve segui-lo... segui-lo... senão...
Dez minutos depois, Julie deixou a tenda. Que delícia a luz do sol, o céu azul e o ar fresco! Fez para as amigas um ligeiro resumo, mas estava tão pálida, que ambas perguntaram se ela se sentia mal. Julie meneou a cabeça e, apesar do aperto na garganta, sorriu alegremente.
– Você estava certa, Cheryl, ela não é muito boa.
Foram se afastando e novamente Julie recebia os acenos e sorrisos dos amigos e conhecidos, mas o que ela ouvira na tenda da cigana era como um apertado anel de tristeza envolvendo seu coração.
– Pensei que ela me falaria de Alastair... – Lavínia voltou-se para a futura prima, enquanto Julie movia a cabeça compreensivamente.
– Não é bom estar tão apaixonada – avisou – você pode facilmente ser magoada.
– Não por Alastair – respondeu enfática.
Os olhos de Lavínia demonstravam confiança ilimitada e, involuntariamente, Julie virou a cabeça para olhar de relance a tenda escura de onde há pouco saíra.
– Alastair é maravilhoso! Nunca seria capaz de me magoar, nunca!
Julie fechou os olhos e por um momento lhe pareceu que sua força e altivez a abandonavam. Mas não; conseguia sorrir gentilmente para Lady Swinton-Cromley que a cumprimentara ao passar.
– O que ela lhe disse? – perguntou Cheryl, curiosa, examinando a face pálida da amiga. Mencionou Edward?
– Sim, ligeiramente. – Deu de ombros e rapidamente, antes que as outras pudessem falar, disse – Foi tudo muito ridículo; como eu disse ela não é nada boa.
Lavínia estava distante; numa feliz contemplação de seu futuro e Cheryl pensava se devia ou não continuar perguntando quando Julie disse num tom conclusivo:
– São sempre bobagens o que se ouve de cartomantes, mas como observou Lavínia, é divertido.

Tio Edwin estava no escritório, quando Julie chegou em casa, bem a tempo para o chá. Bateu e entrou, sem mesmo esperar que lhe fosse dada permissão, e seu tio olhou-a ligeiramente surpreso. Permaneceu parada um momento no vão da porta. Era uma esbelta e adorável garota de estatura mediana. Descendente de uma longa linha de aristocratas, herdara traços de incomum beleza e uma natural reserva, que dava a falsa impressão de frieza e falta de sentimentos. Sua pele, delicadamente colorida, possuía uma luminosidade quase transparente e pelas suas veias corria o sangue azul de seus nobres antepassados.
O tio esperou que ela falasse. Seu amor era realmente profundo, não fazendo diferença entre ela e seu filho. Edwin Veltrovers, quando já casado, tivera um amor secreto pela mulher que se tornou esposa de seu irmão.
Julie permaneceu silenciosa e, franzindo um pouco a testa, pôs-se a imaginar o porquê da expressão do tio.
– Você quer alguma coisa, querida?
Vagarosamente, Julie andou pela sala e parou junto à escrivaninha, fitando ó tio como se fosse um estranho e não o homem que a havia criado com amor de pai. Aos sessenta anos Edwin Veltrovers era extraordinariamente bem conservado. Uma mão pousava na mesa ainda segurando uma caneta e a outra descansava no braço da cadeira.
– Quem é? – perguntou finalmente Julie com uma voz gelada. – Aïdoneus Lucian?
Seu tio estacou sentindo um espasmo na garganta. Uma súbita palidez acentuou as rugas nos cantos de sua boca.
– Aïdoneus. o quê? Eu o conheço?
Seus lindos olhos brilharam.
– Pelo que sei, deve tê-lo conhecido, pois há dez anos atrás você me prometeu a ele. – Seguiu-se um silêncio carregado de tensão. Lentamente, mas em tom agressivo, acrescentou: – Por sete meses no ano, tio Edwin.
A palidez acentuou-se ainda mais no rosto do velho. Claramente ele recebera um tremendo choque.
– Aïdoneus...
Julie fitou-o bem dentro dos olhos.
– O nome que normalmente usamos é Hades. Mas em grego o nome é Aïdoneus.
Na mitologia, Aïdoneus carregou a filha de Deméter para o centro da terra... onde fez com que ela permanecesse durante os mais escuros meses do ano, quatro neste caso, e não sete.
Edwin passou a língua sobre os descorados lábios, deu de ombros e sua fisionomia clareou. Arqueando as sobrancelhas, perguntou:
– Por que esse melodrama? Não estou entendendo você, Julie.
Ela lançou-lhe um olhar de desprezo.
– Não é muito tarde para mentiras, tio? Prefiro acreditar no que me contaram.
– Quem lhe contou? – perguntou depois de breve hesitação. – Somente duas pessoas sabem disso.
– Duas pessoas?
– As outras, além de Doneus, esse é o seu apelido, são Alastair e a sra. Fellows.
– A governanta? Ela sabe que você me ofertou a alguém?
Sua fisionomia crispou-se com impaciência.
– Que estranhas expressões você usa, filha. Quem andou lhe contando essas coisas?
Julie sentiu um aperto na garganta. Amava seu tio, mas agora sentia desprezo por ele, em grande parte porque não demonstrava estar arrependido como ela esperava.
– Não importa quem me contou a história. Há dez anos atrás você prometeu que me enviaria a esse Doneus, quando eu completasse dezenove anos, para me casar com ele. Seria para ficar com ele sete meses do ano, de setembro a março. Por que isso? – ela queria saber, pois a cigana omitira essa explicação.
– Ele mergulha para apanhar esponjas. Vai para a costa da África durante cinco meses por ano.
– Compreendo. Daí o acordo para que eu viesse para casa nesses cinco meses?
Edwin bateu energicamente a mão na mesa. Recuperado do choque, sentia-se agora preparado para enfrentar a sobrinha.
– Vá direto ao assunto, Julie. Quem lhe contou isso de que você me acusa?
Julie quedou-se silenciosa por algum tempo, pois raramente seu tio lhe dirigia uma palavra mais dura.
– O senhor me prometeu a esse grego, em troca do silêncio sobre a morte da moça que Alastair matou.
– Matou? Não diga isso, Julie, meu filho não é um assassino.
– A palavra mais suave para isso é assassino involuntário. – O rosto de Julie estava branco como cal e seu estômago contraído como se tivesse um grande peso em cima dele. – O senhor nunca teve a intenção de cumprir essa promessa.
– Naturalmente que não. Não se pode dispor das pessoas como se fossem objetos. Em meu caso, como poderia enviá-la para aquela rochosa ilha grega para se casar com um estranho? Você certamente se recusaria. Nunca tive a intenção de cumprir a promessa. O homem ficou satisfeito porque na Grécia é costume aceitar uma moça quando os pais a oferecem.
Parou por um momento. Julie esperou, ainda transparecendo desprezo em seu olhar, a mente em turbilhão.
– O homem parecia louco e eu tive que prometer para acalmá-lo. Assim ele saiu pacificamente pela minha porta.
– Ele não estava louco. Somente fora de si.
– Estava muito aflito, concordo. Era um casal de aldeões gregos. A moça morava com o rapaz antes de Alastair conhecê-la.
Edwin calou-se e Julie concluiu suavemente:
– Desgraçou-a. E, não satisfeito, atropelou-a com o cavalo, matando-a.
Os dois nunca moraram juntos, garantira a cigana e Julie preferia acreditar na palavra dela.
– Ela se atirou sob as patas do cavalo dele.
– Não foi o que me contaram, mas se o fez, foi porque estava desesperada. A reputação de uma moça grega está arruinada se algo assim lhe acontece. – As cores voltaram a seu rosto, mas seus braços pendiam rígidos junto ao corpo.
– Onde você soube de toda essa história? Eu insisto em saber.
– A atitude do velho por um instante se abrandara, mas estava cadavérico e sua voz um tanto vacilante. – Você acaba de chegar da festa e lá ninguém poderia ter falado desse acidente.
– Na verdade, soube no castelo. Uma cigana foi enviada especialmente para me ver e transmitir a mensagem.
– Para ver você? De lá da Grécia? Tolice. O homem não poderia dar-se ao luxo nem de enviar um telegrama, quanto mais de mandar alguém aqui.
– Pois sei que ele enviou essa mulher especialmente para me ver. Doneus disse-lhe que entrasse em contato comigo de qualquer maneira. Ela soube da festa, soube que toda a aristocracia estaria lá, e fez-se passar por cigana. Se não me tivesse encontrado, tentaria arranjar outro modo.
– Como o demônio arranjou dinheiro para mandar uma pessoa aqui?
– Ele deve ter economizado durante meses, ou até mesmo anos. Não imagino quanto possam ganhar esses apanhadores de esponjas. – Fez uma pausa e então disse lentamente, frisando cada palavra: – Esperemos que ele seja suficientemente pobre para aceitar um suborno.
– Um suborno? Do que está falando? Não temos que subornar esse odioso homem. Nunca ouvi tamanha tolice em toda minha vida. Tenho vontade de chamar a polícia.
– Eu não o aconselho – murmurou.
Novamente o tio voltou à carga: – É melhor me contar tudo.
Julie contou em detalhes como tudo se passara, terminando por resumir o recado mandado pela cigana: ou ela ia para a Grécia para ser sua esposa, ou ele viria para a Inglaterra e apareceria na igreja na hora do casamento.
– Ele pretende denunciar Alastair, antes que a cerimônia comece.
– Na... Ele irá à catedral e fará um escândalo?
– Essa a mensagem que me foi transmitida.
Um pesado e profundo silêncio caiu sobre o elegante escritório forrado de carvalho. Edwin levantou-se e começou a andar, abrindo e fechando as mãos como que querendo se libertar de algo que o aprisionasse. Havia sido duramente atingido. Era imperativo que seu filho fizesse esse vantajoso casamento, pois as finanças dos Veltrovers iam de mal a pior.
– Eles eram só um casal de aldeões... – sua voz não era mais que um sussurro – rústicos e miseráveis... Nunca vi a moça, mas Alastair disse que ela era andrajosa. Vieram ver a avó dela, que era inglesa. Estava muito mal e queria se despedir da neta. O noivo da moça foi quem a trouxe, não me pergunte como, mas trouxe. Ela era linda, assim me disse Alastair, e ele... bem, ele...
– Resolveu se divertir um pouco com ela.
Edwin franziu profundamente a testa.
– Não é próprio de você dizer essas coisas. Os dois não estão sendo julgados. Alastair era muito jovem e a moça provocante, não rejeitando um divertimento como você cruelmente chamou. – O tio procurava se recompor novamente. – A moça fugiu do noivo no dia do aniversário dos seus dezenove anos; daí ele exigir que eu o compensasse com outra moça de dezenove anos. Mas isso tudo está fora de cogitação; simplesmente não pode estar acontecendo...
– É, mas está! A cigana me contou que a garota esperava se casar com Alastair. Foi por isso que deixou o noivo voluntariamente. – Fez uma pausa e então continuou: – Não morreu imediatamente e Doneus estava com ela quando expirou. Sentia-se não somente desolado, mas também ferido e humilhado por ter ela preferido outro homem a ele, alguém até inferior.
– Inferior? – Edwin explodiu. – Meu filho inferior a um rude, tosco e bronco aldeão?
Julie ergueu à linda cabeça:
– Posso ter sido criada no luxo, no meio da aristocracia inglesa, posso possuir uma grande fortuna herdada de meus pais, mas julgo um homem pela sua honra e integridade e não pelos seus bens. Sei pouco desse grego, mas deve ser superior a Alastair, pois Alastair é tão baixo quanto o mais baixo!
– Julie... – Edwin mostrava-se muito triste e chocado, torcendo as mãos. – Julie, minha querida... Não há dúvidas que você se aborreceu muito com toda esta história. Não importa o que você diga, não levarei em consideração. Esse negócio não é para nos preocuparmos. Chamarei a polícia. Venha, querida, é quase hora do chá. Venha dar uma volta comigo no jardim como sempre fizemos. Só nós dois.
Seu desprezo por ele acabara e agora ela se sentia alquebrada também, pois repentinamente todo o seu mundo de segurança e paz desmoronara. Seu primo, louco e cativante, sempre fora como um irmão e seu tio como um pai. A despeito de sua própria herança lhe garantir segurança no futuro, essa casa sempre fora seu refúgio. Um paraíso para onde sempre poderia correr se algo desse errado. Mas agora se via sozinha, órfã como realmente era. Sua fé nos que amava estava abalada e julgava-se incapaz de resolver o caminho a seguir.
Não se mexeu para acompanhar o tio ao jardim e este deixou-a.
Julie permaneceu de pé, junto da escrivaninha, relembrando o que a grega lhe dissera. A moça tinha dezoito anos e o rapaz dezenove, quando ficaram noivos, um ano antes da tragédia que a envolveria.
Na Grécia, um noivado é um compromisso muito sério e rompê-lo é impossível. Mas essa greguinha, tendo sido trazida para a Inglaterra pelo noivo para ver a avó moribunda, deveria ter ficado deslumbrada com o esplendor e beleza do castelo de Belcliffe.
Doneus fora forçado a procurar um emprego para poder pagar a viagem de volta. Deixara a noiva com a avó e um tio. De algum modo, ela e Alastair se encontraram e a garota ficou apaixonada por ele.
Edwin lhe dissera que a moça se atirar sob as patas do cavalo de Alastair, mas a cigana lhe contara uma história diferente. De coração partido pela sua perfídia, ela procurara Alastair para um último apelo, querendo explicar-lhe que era de todo impossível seu casamento com Doneus, pois este descobrira a relação dos dois. Furioso, sem mesmo desmontar, Alastair puxara as rédeas do cavalo, passarinhando, ficara fora de seu controle por alguns segundos, alguns segundos fatais...
Depois do enterro, Doneus fora ao castelo de Belcliffe e pedira para falar com Alastair. Mas foi Edwin quem o recebeu, tomando a si a questão e pedindo explicações a Doneus pelas afirmações anteriores. Todavia, Doneus vira Julie brincando perto do lago e em sua mente atribulada antevira uma forma de vingança. Exigira ter a sobrinha de Edwin para si, quando ela tivesse dezenove anos, para compensar sua perda.

Naquela noite, durante o jantar, Alastair quis saber o que havia de errado.
– Vocês dois discutiram – disse, observando um e outro. – Apesar de ser quase impossível.
Julie ficou calada, mas logo seu tio contou o que houvera. Para seu espanto e desgosto, ele encarou o fato tão displicentemente, que ela se sentiu mal.
– Que estúpido! Então pretende fazer um escândalo na igreja? Esses gregos são assim mesmo: cabeças quentes e impulsivos.
– Impulsivos? – Julie segurava o garfo a meio caminho da boca e o encarava. – Ele esperou dez anos por uma reparação. Eu não chamo isso de impulsão.
Ela o viu corar. Sabia que era porque nunca o havia enfrentado. Sempre o tivera em alto conceito, admirando suas maneiras, seu jeito de ser e sua integridade. Sua integridade... Sentiu um rompante de deixar a mesa, mas as boas maneiras a impediram.
– Eu disse a Julie que vou chamar à polícia – informou a Alastair, que concordou plenamente.
– Não podemos permitir que um homem de tão baixa procedência nos intimide.
Em silêncio, todos pareciam concentrados no jantar. Julie só remexeu o prato e depois largou os talheres. Edwin lhe dirigiu um olhar compassivo e disse:
– Julie, tudo isso não tem tanta importância. Como eu disse, os dois eram simples aldeões e tudo o que aconteceu não deve afetar gente como nós. É uma pena que você tenha tomado conhecimento dessa história infernal, mas deve se esforçar para esquecê-la.
– Papai está certo – acrescentou Alastair imperturbável, pedindo mais carne – o homem é um lunático, deveria ser preso.
– Você roubou a mulher de outro homem! – retrucou Julie, incapaz de ouvir em silêncio. – Roubou a mulher de outro homem e nem por isso está arrependido! Que espécie de homem é você? – dirigindo-se a Edwin, acrescentou: – Como pude ser tão tola durante todos estes anos e admirá-lo tanto? Roubar a mulher de outro homem, arruinar-lhe a reputação e se recusar a casar com ela!
– Casar? – Alastair quase engasgou. – Você está louca? – Seus olhos azuis a fitaram com total incredulidade. – Eu, um Veltrovers, casar com uma aldeã grega? Você seria a primeira a desaprovar!
– Não, naquelas circunstâncias. – Julie estava calma agora, mas seu rosto pálido e suas mãos sobre a mesa tremiam visivelmente. – Era uma questão de honra.
Edwin encarou-a com a mesma expressão de incredulidade que seu filho.
– Não sei o que se passa com você, Julie, mas está falando selvagemente. Sabe muito bem que seria impossível Alastair casar-se com a garota.
– Por quê? A fortuna da família estava em perigo há tanto tempo atrás?
Nunca se dirigira ao tio com tal desrespeito. Conquanto aparentasse ao mundo frieza e altivez decorrente de sua posição, seu coração era meigo, e rígido seu senso de honra e justiça. Tinha pena da moça e mais ainda do noivo, que voltara à ilha de Kalymnos, dissera a cigana, sem a futura esposa. Sem dúvida, tivera que dar muitas explicações. Se foi verdadeiro e fiel, deveria ter sofrido muitas humilhações, pois nunca uma moça grega abandona seu noivo por outro homem.
– O que é isso? Como ousa me falar dessa maneira?
Já com as lágrimas lhe enevoando os olhos, sentiu que não poderia mais permanecer ali.
– Só peço a vocês dois uma boa razão pela qual Alastair não poderia se casar com ela.
Alastair suspirou e respondeu irado:
– Já lhe disse, era impossível!
Julie olhou-o notando sua expressão de raiva. Pensou em Lavínia, vivendo num mundo encantado e idolatrando o futuro marido.
– Nunca passou pela sua cabeça se casar com ela, no começo, quero dizer?
– Certamente que não. Sua pergunta é tola, pois você sabe muito bem a resposta.
Julie baixou os olhos, pedindo ao criado que tirasse seu prato. Este aproximou-se da mesa e fez menção de retirá-lo.
– Este negócio abominável não pode ter feito você perder o apetite – disse Edwin, desta vez sem se importar com a presença do criado. – Coma!
Ela, fitando o criado junto à cadeira, ordenou:
– Pode tirá-lo e não me traga mais nada.
Alastair soltou outra exclamação exasperada, mas depois permaneceu em silêncio, concentrado no jantar.
– Procuraremos a polícia amanhã bem cedo. – A voz de Edwin perdera o tom cortante, mas seus olhos traíam a raiva que o consumia. – Que maçada! Depois de todos estes anos! Por que não nos esqueceu essa miserável criatura? Deve ser uma pessoa mórbida! Também, de um estrangeiro o que se pode esperar?
– Ele é um ser humano e tem sentimentos!
Entretanto, enquanto dizia essas palavras, Julie imaginava como seria Doneus. Teria aproximadamente trinta anos e alimentara esse plano de vingança todo esse tempo. Parecia impossível que ainda pretendesse levá-lo a cabo, mesmo que tivesse permanecido solteiro, no entanto era essa a realidade. Estava inclinada a concordar com Edwin numa coisa: Doneus Lucian era realmente um homem mórbido. Seus devaneios foram interrompidos pela voz do tio que falou ignorando seu último comentário:
– Há algo de muito estranho nisso tudo. Como pôde aquela mulher reconhecer você? Dezenas de pessoas devem ter entrado naquela tenda.
Julie já havia mencionado a revista e sua certeza de que lá estava sua fotografia. Aparentemente, isso escapara a seu tio e ela repetiu tudo. Ao se recordar, uma nova e profunda ruga veio se juntar às demais em seu já sobrecarregado semblante.
– Como foi essa revista parar nas mãos dela?
– Primeiramente nas mãos dele, ao que parece. Na Grécia também se compram revistas...
– Não essa. Tenho a certeza que não.
– Alguém pode lhe ter dado. Ou algum turista ter esquecido em algum lugar. De qualquer modo, interessa como ele conseguiu? Viu meu retrato e meu nome, soube que eu estava com quase dezenove anos e então agiu como planejara.
Intimamente se sentia confusa, procurando melhor explicação para os fatos, convencida de que se uma houvesse, ela a descobriria. Doneus Lucian alimentara seu rancor e agora esperava pela vingança. Mandara a mulher, que poderia ou não ser sua parenta, só para que ela transmitisse seu recado... Quão oportuna tinha sido aquela reportagem da revista! O que aconteceria se não tivesse sido publicada? Aturdida, Julie balançou a cabeça, incapaz de achar qualquer resposta a tantos enigmas. Deveria haver uma explicação, pensou novamente, mas não tinha condições a essa altura de descobrir. Porém, mistério ou não, a dura realidade teria de ser enfrentada: ou ela aceitava esse homem, ou ele cumpriria sua ameaça e denunciaria Alastair. Julie cerrou os olhos. Não era mais em Alastair que estava pensando, mas na adorável criatura com quem este deveria se casar. Lavínia, que o via acima de tudo com respeito e que ficaria arrasada se soubesse desse escândalo do passado.
– Tenho que ir até essa ilha. – Julie pensou em voz alta; mas, assim que acabou de dizer isso, a mão de seu tio se abateu subitamente sobre a mesa, fazendo com que os copos balançassem.
– Você está agindo de maneira irracional, Julie. Agora faça o favor de esquecer tudo imediatamente, antes que eu perca a paciência!
A raiva dele não poderia feri-la. Precisava proteger Lavínia a todo custo, da verdade ela nunca saberia.
– De qualquer modo, preciso, como disse a cigana, ir à Kalymnos.
– Você não vai fazer nada disso, pois eu a proíbo!
– Quer dizer – atalhou Alastair – que você agora encara a possibilidade de se casar com o aldeão? – Parecia se divertir muito com o rubor de Julie.
– Não seja ridículo! Eu lembrei ao tio Edwin a possibilidade de um suborno e acredito nisso, se é que ele é apenas um apanhador de esponjas como vocês disseram.
Julie desviou o olhar e viu Edwin menear a cabeça, confirmando: – Claro que é somente um apanhador de esponjas, pois todos o são naquela ilha.
Julie não achava que fossem, mas não viu motivo para discutir uma coisa tão sem importância. Seu tio voltou a falar em chamar a polícia e então, olhando-o frontalmente, perguntou:
– O que vai dizer a eles?
– Não é de sua conta – respondeu carrancudo –, mas sim de Alastair e minha. Na realidade você não está absolutamente envolvida. Por isso, por favor, mude de assunto.
– Não estou envolvida! – exclamou. – Estou sim, e o que é pior, não é por minha culpa!
Edwin fuzilou-a com os olhos, muito pálido.
– Eu disse que o assunto está encerrado! Ou você obedece ou sai da mesa!
Por um momento ainda Julie permaneceu sentada, fixando Alastair que, calmamente, continuava seu jantar. Depois, silenciosamente, saiu da sala, convencida de que se seu tio pensasse um pouco mais mudaria de idéia e não chamaria a polícia.
Estava certa. Na manhã seguinte, logo após o café, mandou chamá-la ao escritório. Entrou sem bater, como de costume.
– Sente-se, Julie. – Seu rosto estava pálido, exatamente como na véspera, quando ela começou a lhe contar toda a história. – Conte-me tudo novamente, querida. Admito que agora estou preocupado. Não posso meter a polícia nisto, nem me arriscar a uma publicidade. Os repórteres adorariam explorar um velho escândalo.
– Eu sei, tio.
Julie sentou-se. Sentimentos contraditórios debatiam-se em seu coração: pena do tio, pois afinal não fora ele quem pecara contra a moça e seu noivo; ao mesmo tempo sentia desprezo por ter ele feito a absurda promessa anos atrás, ainda que sem a menor intenção de cumpri-la.
– Em sua opinião, acha que aquele homem cumprirá sua ameaça? – Sua voz estava rouca e cansada. Julie achou que ele não dormira direito, assim como ela não pregara os olhos.
– Tenho certeza que sim.
Julie parou, sentindo um ligeiro arrepio percorrer seu lindo corpo, enquanto pensava no nome dele: Aïdoneus... nome grego de Plutão ou Hades, deus das regiões infernais, cuja esposa era a malfadada Perséfone, condenada a passar um terço do ano nas sombras do centro da terra com seu satânico marido. Conta a mitologia que quando Hades viu Perséfone sentada na relva com as ninfas, impressionado com sua incrível beleza apaixonou-se por ela e raptou-a, privando-a da luz do sol e levando-a para a escuridão de seu reino abismal. Agora, Aïdoneus, cujo verdadeiro nome era Hades, pretendia tirá-la de sua linda casa e fazê-la morar com ele na rochosa ilha de Kalymnos, durante sete meses de cada ano. Seu tio garantira que tal não aconteceria. De fato, não fora o rosto moreno da cigana, que Julie lembrava com um pouquinho de medo, tudo lhe parecia irreal.
– A mulher foi taxativa – continuou – e estou convencida de que Doneus pretende o que disse. Além disso, por que gastaria tanto mandando alguém para cá se não estivesse plenamente decidido?
Edwin assentiu.
– Foi exatamente nisso que fiquei pensando durante a noite. Ele está plenamente decidido, como você diz. No entanto, alguns aspectos do negócio me parecem um quebra-cabeça. Por que, por exemplo, não veio pessoalmente?
Isso já ocorrera a Julie, que chegou à conclusão de que talvez fosse por medo de que Edwin ou Alastair chamassem a polícia. Mencionou a possibilidade ao tio, que concordou plenamente depois de um momento de reflexão.
– Talvez, pois ele deve ser um covarde.
– Como o senhor chegou a essa conclusão?
Se Doneus Lucian era um apanhador de esponjas, não poderia ser um covarde. Ao contrário, devia ser até bem corajoso para enfrentar os perigos e até a morte, mergulhando nas profundezas do oceano. Qualquer um sabia que as correntezas das águas profundas podiam aleijar e até matar, e freqüentemente o faziam. Diziam que na ilha de Kalymnos muitos homens inválidos eram vistos, arrastando membros inúteis, sem ajuda, ou assistidos por parentes ou amigos. Não! Fossem quais fossem os defeitos de Doneus, certamente a covardia não era um deles.
– Somente um covarde exigiria em reparação de um suposto erro uma garotinha de nove anos de idade.
– Em primeiro lugar, ele não exigiu uma garotinha de nove, anos de idade, mas sim uma moça de dezenove. Em segundo lugar, a palavra “suposto” não está certa. Esse Doneus foi agredido de uma maneira que para um grego, mais, talvez, do que para qualquer outro homem, atingiu sua honra e seu orgulho.
Impacientemente, Edwin contornou o assunto.
– Estou imaginando como conseguiu o dinheiro para mandar essa mulher até aqui.
– Não deve ter ficado muito caro, se ela veio de navio.
– Talvez você tenha razão.
– Lembre-se de que ele deve ter algum dinheiro, pois pretende vir aqui, como lhe disse.
Edwin fixou uma manchinha da escrivaninha, com os lábios apertados e os dedos tamborilando nervosamente nos braços da cadeira.
– O homem é louco!
Julie, quieta, esperou que seu tio saísse da crise.
– O que eu não consigo entender é como pôde alimentar durante tantos anos esse desejo de vingança.
– Nem eu, também – admitiu ela –, mas precisamos fazer alguma coisa para impedir que a ameaça se concretize. Lavínia está loucamente apaixonada por Alastair e ficaria arrasada se descobrisse que um dia ele matou uma moça.
– Não use essa palavra, Julie.
– Não matou?
– Foi um acidente!
– Foi por acidente que ele a desgraçou?
– Em nome de Deus, Julie, conversemos racionalmente – atalhou Edwin, encarando a sobrinha. – Você está magoada, mas veja bem: isso aconteceu há dez anos atrás e seria lógico que tudo estivesse esquecido... Agora ele deveria estar casado e com família constituída.
– Bem, não casou, nem constituiu família, porque quer se casar comigo. – De repente lhe veio uma idéia. – Tio, o senhor achaque ele tinha esquecido até que viu aquela fotografia na revista?
Edwin considerou o fato.
– Sabe, Julie. Pode bem ser. Isso nos daria até uma possível explicação para o procedimento dele.
– Possível explicação?
– Vamos admitir que tenha tido a idéia quando, afinal de contas, era um simples rapazinho. Cresceu e ficou mais maduro. Sim, suponhamos que tenha considerado tudo um sonho. Então, de alguma maneira, aquela revista lhe caiu nas mãos e nela estavam sua foto e o noivado de Alastair. Ele é um pobre apanhador de esponjas e ali estava a oportunidade de me extorquir dinheiro...
Edwin calou-se, pois Julie sacudia negativamente a cabeça.
– Concordei com o senhor a princípio, tio. Mas temos que nos lembrar de uma coisa: se quisesse dinheiro, teria mandado esse recado. Mas o que mandou dizer foi que o senhor me prometeu a ele quando tivesse dezenove anos, que eu devo ir à Kalymnos, senão ele vem aqui e acaba com o casamento na igreja.
Edwin suspirou profundamente.
– Não faz sentido. Não posso acreditar que alguém alimente um desejo de vingança por tanto tempo.
– Nem eu, e tenho a certeza de que algo nos escapa. O único jeito é eu ir à Grécia e descobrir.
– Não, Julie, não deixo. Não podemos nos comunicar com a cigana?
– Ela disse que eu não a veria mais a não ser em Kalymnos.
– Estava tão certa de que você iria?
– Sim, estava.
Houve uma pequena pausa, mas como Edwin não falasse, Julie perguntou quanto ele pretendia oferecer.
– Umas duzentas libras serão suficientes.
Julie pensou um pouco.
– Ele pode pedir mais. É melhor eu levar quinhentas.
– Você não irá! Só se eu ficar louco, deixaria você ir para a Grécia sozinha...
– A mulher disse que devo ir sozinha.
– Temos o endereço dele. Escreverei perguntando quanto ele quer.
– A cigana disse categoricamente que não haveria qualquer comunicação. Devo chegar à Grécia uma semana antes do casamento, no máximo.
– Uma semana... – Edwin fitou-a. – Isso nos revela uma coisa valiosa – acrescentou –, o rapaz ainda é pobre.
– Como chegou a essa conclusão? – Julie também não duvidava que o rapaz fosse pobre. Numa ilhota como Kalymnos, não deveria haver jeito de alguém enriquecer.
– Ele pede uma semana. Se tivesse dinheiro, não pediria mais do que dois dias.
Julie concordou, parecia lógico.
– O senhor acha que quinhentas libras serão suficientes para eu levar? – perguntou calmamente.
– Acabei de dizer que você não vai!
Encarou-o resolutamente.
– Vou, tio Edwin. Desde o momento em que a cigana me transmitiu o aviso, eu já sabia que obedeceria. Não, por favor, não argumente. Afinal sou dona de mim. Irei a essa ilha, falarei com Doneus e lhe oferecerei o dinheiro.
– Não quinhentas libras – interrompeu Edwin rapidamente. – Duzentas é mais que suficiente, porque ele ficaria grato até por menos que isso. Lembre-se, ele trabalha somente cinco meses por ano; o resto do tempo, descansa ou talvez cultive uma horta na casa ou choça onde mora. Provavelmente cria galinhas, são todos assim nessas pequenas ilhas gregas, vivem de migalhas que conseguem arrancar da terra pedrenta e esturricada. – Balançando a cabeça, concluiu: – Não, Julie, eu não vou desperdiçar meu dinheiro. Duzentas libras comprarão a segurança que necessitamos. Não tenho mais dúvidas.
Por alguns minutos ainda discutiu com Julie a ida para a Grécia, mas ela permaneceu irredutível. Lembrou-lhe que não era mais criança, que já viajara sozinha antes. Finalmente, ele desistiu de argumentar e disse que se sentia aliviado por ela ter tomado essa decisão.
– Se ele aceitar as duzentas libras, sairemos disso tudo facilmente.
– Facilmente...
O tom de Julie era amargo e seu coração pesava como chumbo. Então era esse o valor de uma vida?


Capítulo II


Na imensidão do mar, pequenas luzes venciam a escuridão. Fracas a princípio, enquanto o navio seguia, balançando ao sabor das ondas, crescendo à medida que este se aproximava das praias e, finalmente, grandes e cintilantes quando se podia ver de onde provinham. Seu brilho chegava até o cais e o indistinto contorno da baía gradualmente tomava forma. Julie, junto à amurada do Knossos, olhava a escuridão. O navio passara por outras ilhas e de algumas até que bem próximo. Cada uma delas era na realidade um dos muitos cumes de um maciço vulcânico que jazia nas águas claras do mar Egeu.
Tendo voado até Rhodes, Julie embarcara no navio para Kalymnos, que lá atracou às dez da noite. Apesar do adiantado da hora em que chegara à ilha, Julie mandou um recado a Doneus Lucian, informando que o procuraria na manhã seguinte. Não recebeu resposta, mas decidiu que iria assim mesmo, concluindo que ele devia falar maio inglês e ser, provavelmente, incapaz de escrever.
Praticamente, todos os passageiros do Knossos eram gregos. Desembarcar em Kalymnos foi uma experiência que jamais esqueceria. Os gregos, na maioria homens, empurravam-se numa tal confusão e com tanta pressa, que era como se o demônio estivesse em seus calcanhares. Julie ficou para trás, esquivando-se da balbúrdia. Um carregador surgiu e tomou-lhe a mala das mãos.
– Num minuto, madame. Ou prefere esperar um pouco?
– Prefiro esperar.
Seriam todos os gregos assim? Finalmente se viu em terra firme e seguiu a direção tomada pela maioria. No molhe, reparou no povo. Os homens eram rústicos, másculos, pele morena, queimados do sol. Alguns usavam camisetas grossas de gola alta e suéteres de lã preta. Seria algum deles o bravo e ousado apanhador de esponjas? Imaginava, tentando visualizar a aparência do homem com quem se encontraria logo mais. Esperava que ele fosse fácil de negociar... Mas não o insultaria falando em duzentas libras. Oferecer-lhe-ia mais e cobriria a diferença com seu próprio dinheiro.
Repentinamente, viu um homem sendo amparado por dois outros. Era dolorosamente aleijado e suas pernas pendiam inúteis. Entretanto, era moço, não aparentando ter mais de vinte e cinco anos. Um mergulhador, sem dúvida. A cena entristeceu o meigo coração de Julie.
Como sua mala era pequena e tudo parecia tão perto, não se deu ao trabalho de procurar um táxi, coisa rara naquela época do ano, pois era outubro e já havia terminado a estação de turistas.
Caminhou sob um maravilhoso céu cintilante de estrelas, tendo o escuro mar à direita e iluminados cafés à esquerda. Havia mesas nas calçadas, onde homens bebiam e conversavam jogando tavli.
Como não houvesse nem sinal de um hotel de primeira classe, parou numa das mesas e perguntou.
– Aquele é o melhor hotel. – O rapaz moreno falava num péssimo inglês, apontando logo adiante. – Vá lá, entre e suba a escada.
Olhou desanimada para o lugar indicado. A aparência era sórdida e sem vida, tendo uma miserável luz sobre a porta indicada.
– Aquele é o melhor? Não há outro? – Permanecia junto à mesa e de repente percebeu a grande agitação que causava. Naquela e noutras mesas próximas, caras morenas a observavam. Compreendeu que causava sensação, pois toda essa gente estava num tal marasmo, que a aparição de uma estrangeira fora da estação representava para eles uma distração.
– Há outros hotéis, mas estão fechados nesta época do ano.
– Obrigada. – Julie esboçou um sorriso e dirigiu-se para o lugar indicado. Mas seu ânimo estava abalado; nunca se hospedara num lugar como aquele.
Os degraus eram estreitos e mal iluminados por uma pequena lâmpada pendente do teto. Havia um cheiro de mofo característico de casa sem uso e uma quietude quase assustadora. Estariam todos dormindo?
Silenciosamente, de uma porta atrás dela, surgiu um homenzinho. Seus olhos examinaram cada detalhe de sua figura, detendo-se por um momento na mala que ela carregava.
– O senhor tem um quarto? – perguntou polidamente e ele imediatamente assentiu.
– Está sozinha?
– Sim, estou.
Instintivamente, da porta, relanceou um olhar por todo o quartinho e sentiu verdadeiro alívio quando viu uma chave na fechadura. Num canto, uma cama de casal e no outro uma pia com enormes pés de ferro, pintados de um verde brilhante. Havia um guarda-roupa que podia ter pertencido à arca de Noé; na janela, cortinas quase transparentes, de tão esgarçadas e finas. Julie sentiu um arrepio, pensando em seu luxuoso quarto, com paredes recobertas de cetim, seu pesado tapete e sua mobília principesca. Estivesse ela agora em casa e uma criada teria preparado sua cama e posto nela sua camisola.
– Este é o melhor quarto? – perguntou, virando-se e encarando o homem que a olhou espantado.
– É, madame... desculpe...
Julie então sorriu. Aquela gente era tão pobre e o homenzinho ficara tão feliz ao ver um hóspede naquela época do ano...
– Serve-me muito bem – disse andando pelo quarto – O senhor tem uma toalha?
– Trarei uma. Não esperávamos hóspedes em outubro. – Saiu e voltou minutos depois. Colocou-a no porta-toalhas de madeira e parou um momento, observando-a. – Veio para as férias? – perguntou com visível curiosidade.
– Vim para pagar uma visita. – Propositalmente, mudou de assunto. – Pode mandar meu café às nove horas da manhã?
– Sim, madame... – hesitou um pouco, relutando em deixar o quarto sem saber o real motivo de sua vinda. Se soubesse, poderia ir se juntar aos amigos sentados às mesas do café e teria muitos ouvidos para seus mexericos.
– Pela manhã a senhorita vai precisar de um táxi?
– O senhor arranja um para mim?
– Certamente. Aonde deseja ir? – Reparando que o rosto dela se tomara sisudo, acrescentou rapidamente: – É para eu dizer a Stamati quando vier buscá-la.
– Pode deixar, eu mesma direi.
O homem entendeu sua discrição e sorriu. Mas cedo ou mais tarde, acabaria sabendo.
Enquanto se lavava, Julie ouviu um zumbido de mosquito junto à orelha. Dobrou a toalha e bateu. Não acertou e continuou procurando-o até desistir e se deitar. Zuum! Sentou-se na cama para matá-lo, mas nos poucos minutos gastos para acender a luz e pegar a toalha, o mosquito já sumira. A mesma cena se repetiu mais duas vezes. Que absurdo! Mosquitos em outubro! Devia ser porque ainda fazia muito calor ali. Levantou-se decidida a acabar com ele e então reparou nas inúmeras manchinhas de sangue na parede. Outros hóspedes antes dela já tinham feito isso. Obviamente, não era a primeira. Depois de conseguir matar dois, voltou para a cama. Para ter paz e poder dormir, cobriu a cabeça e os ombros com seu penhoar de náilon. Era quente e incômodo, mas não ousou tirá-lo. Na manhã seguinte descobriu que um conseguira picá-la através do pano, pois estava com um sinalzinho perto dos olhos. Que coisa horrível deveria ser morar ali! Quando conversou a respeito com o proprietário do hotel, este alegremente deu de ombros e disse sorrindo:
– Eles não mordem os moradores daqui.
O táxi chegou quando ela estava acabando de tomar o café. Julie reparou que o motorista a olhou com estranheza quando ela lhe deu o endereço, mas como ele assumiu imediatamente uma expressão vazia, não se incomodou mais com o assunto.
Depois de contornar a baía, o táxi seguiu pelas ruas de casinhas muito brancas e limpas. Em seus jardins muito floridos viam-se rosas, margaridas, gerânios, flamboyants e hibiscos com suas enormes flores vermelhas. Espirradeiras cor-de-rosa floriam ao longo da estrada e bordejavam um riachinho que corria pelos verdes campos do sopé da montanha. Durante todo o tempo em que seguiam deixando para trás Kalymnos, a impressão de Julie era de que a cidade era muito branca, arrumadinha e calma. Três veículos, muito esquisitos, como ela nunca tinha visto, apareceram de repente. Eram muito velozes e tinham uma espécie de carroção preso atrás. O que transportavam Julie não pôde ver, mas a presença deles revelava que a ilha não era tão pobre quanto seu tio afirmara.
Numa praça de uma vila por onde passaram, viu uma enorme imagem de Cristo na cruz. Isso a fez pensar lia piedade dos gregos e imaginar qual seria a crença de um homem com o mesmo nome do rei dos infernos.
Imaculadas casinhas brancas esparramavam-se pelas encostas, todas cercadas de bem cuidados jardins, onde vez por outra cresciam figueiras e cidreiras. Também se viam romãzeiras enfileiradas formando cercas vivas, onde rosas silvestres se misturavam, exalando um delicioso perfume. Uma ilha árida, dissera seu tio. Realmente, acima viam-se picos rochosos arremetendo sua horrível nudez contra o céu, mas a paisagem abaixo era vestida de fresca e verde vegetação, com enormes árvores, finos e elegantes ciprestes, enfeitadas palmeiras, tudo contribuindo para uma incrível variedade de cores. Laranjas e limões suspensos quais lanternas contrastavam vivamente com o verde-brilhante das espessas folhas das árvores onde cresciam. Verdadeiramente lindo ver as casinhas brancas, com seus jardins explodindo em cores, sempre cercadas de grades e portões de ferro. Sob todos os aspectos a paisagem era de perder o fôlego: a selvagem montanha vulcânica, imponente e imensa, tendo mais abaixo as encostas cheias de vida e cores e finalmente o mar Egeu, numa sucessão dos mais incríveis tons de azul, até perder-se no horizonte, despencando pela borda do mundo.
Quanto mais se distanciavam da baía, mais rareavam os carros e as pessoas, até que o único sinal de vida era o balido de uma cabra buscando seu rebanho e um burrinho que vinha pela estrada carregando um homem que sorriu ao cumprimentar o motorista, enquanto observava a passageira sentada atrás. Nada passava despercebido numa ilha como aquela. Logo mais Stamati estaria pondo as novidades em dia. Contaria que a levara à casa do sr. Doneus e então começariam a imaginar por que receberia ele uma visitante inglesa e alguns até se empenhariam mesmo em descobrir o porquê.
Seguiam agora pela estrada da. costa, rumando para o norte da ilha e a cada momento Julie mais e mais se encantava com Kalymnos.
– Estamos perto agora? – perguntou a Stamati, mas se arrependendo imediatamente, pois este se virou para ela como se tivesse os olhos atrás da cabeça.
– Sim, senhorita. A casa do sr. Doneus não é longe.
Sua voz soou diferente e Julie lembrou-se de que também ao saber do endereço para onde iam ele se mostrara algo estranho. Era como se já soubesse de sua esperada chegada a Kalymnos.
“Devo estar imaginando coisas”, pensou Julie, reclinando-se no banco do carro e olhando novamente pela janela. O que viu a fez sorrir. Duas crianças, um menino e uma menina, estavam quebrando nozes na calçada, e quando o carro passou perto, o garoto, rindo, lhe ofereceu uma.
– Quer?– perguntou Stamati diminuindo a marcha. – Eu pego para a senhorita! – Parou o carro e desceu.
– Vão querer algum dinheiro?
Julie pensou que talvez a intenção do garoto fosse receber uma gorjeta e ia abrindo a bolsa quando Stamati disse rudemente:
– Nada de dinheiro, eles lhe ofereceram por pura gentileza!
Sentiu-se repreendida, desconhecendo que freqüentemente os gregos falam nesse tom, e o que parece verdadeiro ódio é apenas uma indignação.
– Muito obrigada – disse Julie às crianças, aceitando as nozes que lhe eram oferecidas já descascadas e prontas para comer.
– Gostosas? – Stamati virou-se.
– Muito! – respondeu depois de provar uma.
Novamente seguiram o caminho. De repente, diminuiu a marcha, tocou a buzina e brecou bruscamente junto a um muro ao lado da estrada. Julie. estava distraída, mas voltou a si, bem a tempo de ver um sorridente rapaz numa lambreta acenar alegremente ao motorista e levando atrás uma mocinha, sentada de lado, com um bebê nos joelhos.
– Como ela consegue se firmar ali? – comentou Julie, notando que Stamati continuava a gesticular, embora o rapaz e sua lambreta já tivessem desaparecido numa curva da estrada.
– Pedro é um verdadeiro louco! Viu como ele fez aquela curva? – Julie sacudiu a cabeça e explicou que nada vira pois estava olhando a paisagem pela janela.
– Que aconteceu? – perguntou, certa de que Stamati não tinha a menor intenção de sair dali enquanto não explicasse tudo.
– Ele veio na contramão! E com a mulher e o bebê atrás. Pedro um dia ainda se arrebenta!
– Não, não diga isso. Se ele é tão descuidado, o senhor deveria ter uma conversa séria com ele.
– Conversa séria! – Desoladamente Stamati sacudia as mãos. – Pedro não ouve ninguém! E a mulher dele adora andar assim. Mas algum dia cairão todos e Pedro aprenderá a lição.
– Não sei como ela se firma sentada daquela maneira! – A simples idéia fez Julie sentir um arrepio de medo. Mas a moça mostrara-se tão imperturbável quanto o marido, quando passaram pelo táxi, como se estivesse sentada numa cadeira confortável com o bebê.
– Ela está acostumada. Nossas mulheres não se sentam em moto como vocês.
– Vamos? – perguntou Julie, sentindo que já era tempo de mudar de assunto.
Enquanto o táxi recomeçou a marcha e vagarosamente entrou numa estrada de terra, a paisagem tomou-se infinitamente solitária, sendo os únicos sinais de habitação a aldeia branca plantada na encosta e o magnífico castelo veneziano, vislumbrado por entre as árvores, quando o táxi fazia algumas curvas. O castelo, tempos atrás, fora uma ruína, mas agora, reconstituído, erguia-se majestoso e nobre, quase na beira do penhasco.
“De lá a vista deve ser soberba” pensou Julie fascinada. Sempre ouvira dizer que os castelos venezianos de Kalymnos estavam em ruínas e surpreendeu-a o fato de alguém ali ter dinheiro suficiente para uma restauração daquelas. Extensos e lindos jardins cercavam-no por todos os lados, menos na frente, que dava para o mar, onde a curta distância se via um iate branco ancorado. Julie supôs tratar-se de uma pequena baía, pela qual uma lancha poderia correr para o mar. Muito perto havia outra ilha, com suas rochas nuas e áridas, tão próxima à praia que parecia estar o castelo inteiramente cercado de montanhas, pois a costa de Kalymnos fazia ali uni semicírculo.
Que panorama se devia ter de lá!
– Esta é a casa do sr. Doneus. A voz de Stamati despertou-a dos devaneios e, olhando pela janela, viu um jardim mal cuidado, um caminho cheio de mato por onde seguiu o táxi até parar ao lado de uma casa arruinada, que mais parecia uma tapera. Quando Stamati abriu a porta para que ela saísse, uma nuvem de poeira atingiu-lhe os olhos.
– Quanto lhe devo? – perguntou, tirando a carteira da bolsa.
– Quarenta dracmas, madame. – Ele tirou a mala do assento traseiro e colocou-a no chão junto dela, enquanto olhava a casa. – Não há ninguém em casa!
Para seu maior desapontamento Julie também achava.
– Obrigada. Não se preocupe com o troco.
– Epharistó para polí. Muito obrigado, madame.
– Bom dia e obrigada.
– Gostei de servi-la, madame.
A sombria aparência da tapera em que Doneus morava reavivou as esperanças de Julie, que, desde sua saída da Inglaterra, temia que Doneus não precisasse de dinheiro. Evidentemente precisava e, assim concluindo, teve a certeza de que seus negócios com ele chegariam rapidamente a bom termo.
A inspeção dos arredores foi interrompida por um enorme e amarelado cão labrador, aparecido de algum lugar atrás da casa e que se aproximava dela latindo alto.
– Jason, ela! – À áspera voz de comando, o cão parou, voltou correndo para o dono, abanando o rabo e continuando a latir como se estivesse agora conversando com o homem.
Este veio vindo, parou para afagar a cabeça do cachorro e então olhou para ela. Ele usava um suéter igual àqueles que Julie vira nos homens do cais. Mas não havia qualquer outra semelhança e toda a imagem que procurara formar dele se desfez quando se aproximou.
Deparou com um rosto severo, de linhas clássicas, um queixo voluntarioso e pele bem morena. Suas feições eram firmes e tensas, a face magra e os malares salientes, de uma pronunciada angulosidade. Espessas sobrancelhas negras, uma larga e nobre testa; lábios cheios e olhos ardentes e negros como carvões no borralho. Julie estremeceu, enquanto admitia que o rosto era atraente, embora de uma maneira indefinida. Destoando dessa impressionante perfeição, uma funda cicatriz riscava a sua face, indo desde a orelha direita até um pouco abaixo do queixo. Julie baixou seu. um tanto assustado olhar e vendo o corpo atlético e másculo teve a impressão de uma tremenda energia. Imaginou-o mergulhando nas águas profundas do oceano, carregando uma pedra ou então emergindo rapidamente para retomar o fôlego após a permanência junto às rochas nas quais aderem as esponjas.
– É o sr. Lucian? – perguntou finalmente ao perceber um lampejo caçoísta nos penetrantes olhos negros diante do seu demorado exame. Ela recebera seu primeiro choque; o segundo viria logo a seguir quando ele falou num inglês correto:
– Sou. Você é Julie? – Sua voz era vibrante e forte.
Examinou-a, reparando em suas feições, a aristocrática fronte, alta e inteligente, a pele clara e fina, os grandes olhos cinzentos, os lábios carnudos tremendo ligeiramente apesar dos esforços para manter a compostura. Isso não era nada fácil, com aqueles olhos fitando os seus... como uma serpente hipnotizando sua presa. Sentiu-se magnetizada e, ainda admitindo-se fascinada por ele, não podia deixar de pensar em seu nome: Hades... o nome dado pelos antigos gregos ao deus do mundo subterrâneo.
Ele permanecia perfeitamente calmo, enquanto Julie, achava-se num estado de inquietação que a assustava. Entretanto, levantou arrogantemente a cabeça chocada com a familiaridade dele.
– Eu sou a senhorita Veltrovers, sim.
Doneus estendeu a mão; que Julie tocou e o contato provocou-lhe estranha sensação. Ele prendeu sua mão mais tempo do que o necessário e tão firmemente que os dedos de Julie se comprimiram.
– Como vai, Julie?
Notou certa tensão nele ao pronunciar seu nome; tentou lançar-lhe um olhar de desdém, mas percebeu que enrubescia. Que um mero aldeão pudesse causar-lhe tal arrebatamento, era inacreditável.
Pegando sua mala, Doneus fez um gesto, convidando-a a entrar. Relutantemente, passou à frente dele com o coração aos pulos. Esse homem era desconcertante, pois, a despeito de suas roupas e da casa onde vivia, era extremamente bem educado e havia algo de nobre nele, alguma coisa que o fazia sobressair dentre todos os homens que conhecera. Tinha um ar de distinção e superioridade, um ar de ser supremo... mas também Hades havia sido um ser supremo... lembrou-se Julie, novamente escorregando para seus fantasiosos devaneios.
A sala onde entraram tornou-se instantaneamente dominada pela presença dele, que parecia enchê-la toda. O cão que seguia seus passos veio até Julie, farejando seus tornozelos.
– Ela! – gritou Doneus e o cão foi até ele. – Sente-se, Jason!
Pondo a mala de Julie numa cadeira, Doneus virou-se e perguntou-lhe se queria tirar o casaco. Ela moveu negativamente a cabeça.
– Não, obrigada. – Sentiu-se ridícula, mas, de algum modo, ficar agasalhada era uma espécie de proteção contra aquele todo-poderoso homem.
Ele ergueu as sobrancelhas, não entendendo sua atitude, e ela acrescentou:
– Nosso entendimento não será demorado, sr. Lucian. O senhor sabe porque estou aqui e quanto mais rápido resolvermos tudo, melhor. Pretendo embarcar no Lindos, que zarpa de Kalymnos às três horas da tarde.
Sem lhe prestar atenção ele disse:
– Sente-se, por favor. Posso lhe oferecer um refresco ou um café?
Julie hesitou e deu um ligeiro suspiro antes de responder que sim.
– Sente-se – convidou Doneus novamente, indicando uma cadeira.
Ela lançou-lhe um olhar de desdém, enquanto ele continuava em um cortês:
– Está bem limpa, Julie... embora não seja igual às que você esta acostumada a usar.


Capítulo III


Sentada, viu-o desaparecer onde ela presumia ser a cozinha. Então fez um detalhado exame de tudo. Que miséria! Mobília pobre num assoalho nu, uma grande lareira de pedra com panelas de ferro dentro. As paredes brancas e as portas pintadas de marrom-escuro, com um buraco onde antes deveria haver uma maçaneta. A um canto, uma miscelânea de coisas, incluindo figuras de pedra, oferendas votivas de algum túmulo antigo, concluiu ela. Pendurados na parede dois ícones, que, devido a seu estado de puro nervosismo, fizeram-na ter uma incontrolável vontade de rir. Lindas versões da Virgem Maria e de São Pedro... aqui na casa de um homem chamado Hades... ou Aïdoneus...
Para sua surpresa, a porcelana era bonita e delicada, e na bandeja onde trouxe o café, havia uma alva toalha bordada a mão. A limpeza fê-la sentir-se mais confortável, e como ele trouxesse também leite quente, pôde tomar seu café do jeito que gostava, enquanto Doneus bebia um espesso líquido preto, conhecido como café turco.
– Agora podemos conversar, Julie. – Sentou-se em frente a ela, a rústica mesa entre eles. – Você considerou minha proposta?
Olhava para Jason, e Julie teve a impressão de que ele deliberadamente tentava esconder dela sua expressão.
– Sua proposta, como o senhor chama isso, é ridícula, sr. Lucian.
– Doneus – interrompeu com suavidade, e irritada mente ela sacudiu a cabeça, franzindo as sobrancelhas.
– Como logo mais estaremos dizendo adeus, não há motivo para intimidades – respondeu, quando novamente ele a interrompeu:
– Tenho a impressão de que vamos nos casar.
– Realmente pensa assim?
Houve uma ligeira hesitação... estranha, por sinal; mas depois concluiu, olhando-a atentamente como quem observa cada linha de suas feições.
– Penso, Julie. – Era impressão, ou havia incerteza na sua voz?
– Sr. Lucian, o senhor não pode querer se casar comigo. A idéia é prepotente ao extremo. Ambos sabemos disso.
– Por que veio aqui, Julie? – perguntou gentilmente.
– Srta. Veltrovers! – retrucou.
– Por que veio? – Seus olhos negros faiscavam duros e raivosos. – Por que veio? – repetiu.
– Para conversar a respeito. – Ela adotara uma conduta mais branda. – Por favor, não pense que sou insensível ao que o senhor sofreu durante todos esses anos, sr. Lucian. Mas eu era apenas uma criança e o senhor muito jovem. Em sua desgraça, exigiu uma reparação. Mas agora, é mais velho, e... e eu não posso crer... o que quero dizer é que, tendo encontrado e falado com o senhor, eu... bem, o senhor não me parece o tipo de homem que... que... – Calou-se, procurando um modo diplomático de dar a sua opinião, mas Doneus finalizou por ela:
– Minha... aparência, digamos assim, não condiz com o seu conceito de uma pessoa que tenha guardado rancor por tanto tempo. – Sua voz era suave e possuía um quê de humor, como se estivesse se divertindo intimamente.
– Exatamente! – Julie fixava seu rosto moreno, reparando um pequeno tique nervoso junto à cicatriz. Como teria se ferido? Imaginou-o novamente mergulhando nas águas profundas, arriscando a vida cada vez que o fazia, ou podendo voltar mutilado como aquele rapaz que vira em Kalymnos. Estremeceu ante a idéia de que um corpo perfeito como o dele estava freqüentemente exposto aos perigos do trabalho. Sairia um dia Doneus do mar como aquele pobre rapaz? Toda aquela juventude e força inúteis naquele magnífico corpo? Julie pensou nas esposas, filhos e mães daqueles bravos homens de Kalymnos... esperando pela volta dos barcos, coração batendo, examinando ansiosamente seus homens desembarcarem. Cada retomo poderia ser de felicidade para umas a de desilusão para outras...
– Você me envaidece, Julie, mas está enganada. Eu sou capaz de alimentar rancor. – Tomou um gole do café e continuou: – Eu ainda exijo uma reparação.
Rosto pétreo, o olhar duro e sem expressão; como de um demônio, pensou assustada; entretanto, ao conversar, seu ar de dignidade parecia colocá-lo acima da trama que resultara na presença dela ali. Havia na situação toda alguma coisa mais que ,ela não entendia.
– Meu tio lhe mandou algum dinheiro – começou, involuntariamente, olhando ao redor da sala e vislumbrando nos olhos dele o primeiro lampejo de verdadeiro ódio. – Ele sente muito que tudo isso tenha acontecido. – Sua voz resumia-se num sussurro, pois uma sensação de desamparo se abateu sobre ela, como uma espessa nuvem que encobrisse o sol. Sentada ali na frente dele, parecia impossível que tivesse deixado a Inglaterra na otimista expectativa de encontrar um inofensivo aldeão que aceitaria o dinheiro sem a menor hesitação. Em vez disso, encontrara tanta dignidade e força, que estava tendo a maior dificuldade para manter sua pose inata.
– Não há necessidade de tentar proteger seu tio – Doneus dizia, e sua entonação combinava com a dureza de seu olhar –, mas você... Acho que tem um coração bondoso...
O breve silêncio que desceu sobre eles foi quebrado quando Jason, se coçando, bateu numa cadeira.
– Jason, ti simveni. O que há com você hoje? Onde estão suas boas maneiras? – Este levantou as orelhas, estranhando as palavras ditas em outra língua; levantou-se e descansou a cabeça nos joelhos do dono. Viveria Doneus sozinho, só com o cão por companhia? Se assim fosse, quem cuidaria do cachorro durante os sete meses em que ele se ausentaria?
– Como o senhor chegou à conclusão de que eu tenho um coração bondoso? – perguntou, enquanto seguia os movimentos da mão acariciando a cabeça do cão.
Doneus olhava Julie com os olhos semicerrados, e surpreendentemente, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
– Seus olhos são reveladores, Julie – calou-se, observando o leve rubor de suas faces e o efeito de suas palavras – eles me dizem que você é muito diferente de seu tio e de seu primo.
– Não quero que me considere superior a eles, sr. Lucian – aparteou, seus olhos novamente fixando a mão dele, e, por alguma desconhecida razão, lembrou-se da estranha sensação que sentira quando essa mesma mão prendera tão firmemente a sua.
– Muito louvável, Julie, alegro-me que tenha respondido assim. Seu encanto e simplicidade me agradam muito. – Riu francamente da expressão dela. – Não me diga que não está acostumada a elogios! – concluiu ainda, muito divertido com seu embaraço.
Julie baixou a cabeça; a situação estava começando a ficar íntima demais, concluiu, imaginando se a franqueza era uma característica dos gregos. Propositadamente, seu tom de voz era mais frio, quando começou a lembrá-lo de que estava fugindo do assunto, mas não havia ido muito longe, quando ele a interrompeu:
– A fotografia da revista não lhe faz justiça. – Seus lábios estavam entreabertos, mas desta vez ele não ria, quando ela, rapidamente, levantou a cabeça. – A realidade excede em beleza à foto.
– Sr. Lucian, podemos falar de negócios? – cortou ela aborrecida consigo mesma por corar ante os elogios daquele homem. Queria fugir, sair daquela sala para o ar fresco e o sol, pois as rápidas batidas de seu coração a avisavam de que esse envolvimento emocional intenso estava lhe toldando a razão. – Vai aceitar o dinheiro que nós lhe oferecemos? – Durante o momento de silêncio constrangedor, ela teve a certeza de que ela lera sua mente, e um arrepio percorreu sua espinha ao reconhecer o poder e a inteligência dele.
– Por que supõe que eu queira aceitar esse dinheiro? – perguntou em tom gelado.
– O dinheiro lhe é oferecido como uma reparação.
– Cômodo, não? – foi seu comentário sarcástico, recostando-se na cadeira e ainda agradando Jason.
Um vermelhidão espalhou-se pelo rosto de Julie e os olhos de Doneus se arregalaram com admiração...
– Sr. Lucian – continuou –, estou aqui para lhe fazer uma oferta, não que esse dinheiro compense sua perda, mas sei que poderá usá-lo proveitosamente.
– Quanto vocês me oferecem? – interrompeu curiosamente.
– Quinhentas libras.
– Quinhentas libras! – bradou. – Quinhentas libras! Mas quão generoso é seu tio! – Uma pausa se seguiu antes que Doneus concluísse: – Tem certeza que seu tio possui meios para me pagar tal soma?
O tom de voz dele levou-a a perguntar com uma sombra de suspeita:
– Tem alguma razão para supor que meu tio não tenha meios de lhe pagar, sr. Lucian?
– Diga-me, Julie – disse sorrindo ligeiramente –, sua decisão de vir aqui foi resultante da sua ansiedade pelo casamento de seu primo, ou está mais interessada em salvar a fortuna da família?
Julie deixou escapar um profundo suspiro e o sorriso de Doneus desapareceu.
– Como foi que ficou sabendo de nossas finanças? – perguntou, reassumindo o seu ar de altivez.
– Eu ouço coisas, Julie. Nós aqui não estamos tão separados do mundo como vocês evidentemente pensam. Sei que é imperativo que Alastair consiga a fortuna dos Jarrow. – Interrompeu-se, dando a Julie a oportunidade de dizer alguma coisa, mas como esta permanecesse calada, continuou: – Espero estar certo quando imagino que sua preocupação é mais pela moça do que por seu primo.
A pergunta estava feita e pedia resposta. Julie inclinou a cabeça num gesto de quem concorda.
– Sou muito apegada a Lavínia – admitiu –, se ela viesse a saber do passado de Alastair, ficaria muito infeliz.
– Então a fortuna dela não lhe interessa; não no que lhe diz respeito? – Olhou para ela e a viu desalentada e aflita, os lábios ligeiramente trêmulos.
– A felicidade de Lavínia é o que me interessa.
– Mas não interessa a seu tio – rebateu categórico.
Um pensamento preocupava Julie enquanto baixava a cabeça concordando: como, de tão longe, pudera aquele homem tomar conhecimento de fatos tão íntimos e secretos? Assustou-a quando continuou:
– Você se torna mais e mais atraente para mim a cada minuto que passa, Julie. Isso quer dizer, naturalmente, que a minha decisão de me casar com você se toma também cada vez mais forte.
A suavidade de sua voz quase gentil chegava até ela em completo contraste com a inflexibilidade do seu olhar, e com isso sentiu-se enrubescer vivamente, em completo estado de confusão. Deveria ficar indignada com suas palavras, mas, em vez disso, disse calmamente:
– Sr. Lucian, creio que há nisso algum mistério. De qualquer jeito, toda essa situação não me parece real. – Quase acrescentou que estava começando a duvidar de que ele tivesse realmente mandado aquele recado, mas reprimiu a tempo suas palavras, pois viu que teriam soado muito tolas. Obviamente ele tinha mandado a mensagem... no entanto... Sacudiu a cabeça entorpecida e disse: – Ainda não posso acreditar que o senhor queira realmente se casar comigo.
No rosto dele as expressões se sucederam em rápidas mudanças enquanto ela falava, e Julie não conseguiu interpretá-las. Tinha a certeza de que algumas de suas palavras o haviam abalado e sabia que todo o mistério seria aclarado, se pudesse adivinhar qual o ponto vital daquela emaranhada trama.
– Ao contrário – começou ele, pronunciando calma e firmemente cada palavra –, nada desejo mais do que me casar com você. – Olhou para Jason e falou com ele em grego. O cachorro levantou-se e foi deitar no meio da sala.
Julie deu um suspiro impaciente e tentou de novo:
– Sr. Lucian, vim aqui porque o senhor exigiu. Pensei que fôssemos discutir as condições...
– Minhas condições foram ditadas há dez anos atrás – interrompeu calmamente, e Julie sentiu um aperto de raiva na garganta.
– A promessa que meu tio lhe fez há tanto tempo é ridícula, como também sua exigência! – E examinando a sala com um ar de desdém, acrescentou: – Certamente o senhor encontrará um bom jeito de gastar as quinhentas libras. – Sentia-se aliviada por não ter oferecido primeiramente as duzentas libras como pretendera seu tio.
– Você acha? – Quase imperceptivelmente virou a cabeça e Julie, seguindo-lhe a direção, viu-o olhar para o castelo que lá estava, nobre e majestoso no alto do rochedo. Compreendeu de imediato: ele não esperava receber tal fortuna deles, e agora esta lhe proporcionaria um lar como aquele! Quando voltou a encarar o perfil moreno, um impulso que não entendeu, fê-la dizer:
– Sr. Lucian, O senhor é mesmo um apanhador de esponjas? – Vagarosamente, ele virou-se inclinando a cabeça.
– Essa é minha ocupação, Julie – disse em tom calmo e sem expressão.
– Então certamente aceitará as quinhentas libras.
– Não, não aceito. – Sua voz era glacial agora, e Julie percebeu que ferira seu orgulho. – É casamento ou... – O resto estava claramente subentendido... Julie levantou-se.
– Então não há motivo para discussões inúteis – disse, assumindo toda a arrogância que lhe conferia a situação de membro da aristocracia inglesa. – Eu lhe desejo um bom dia! – Julie tremia. Qual tinha sido o resultado daquela exaustiva viagem? Levaria ele a termo sua ameaça?
– Estou sabendo que o casamento se realizará de hoje a uma semana.
Julie ficou olhando-o com os lábios tremendo.
– Sr. Lucian, seja razoável!
– Seu primo foi razoável quando aquela mocinha lhe pediu clemência?
Julie abriu as mãos, sentindo quão jovem e indefesa ela devia parecer àquele homem, e quão desejável também.
– Não posso ser responsabilizada pelos erros dele – sussurrou. – O senhor não pode ser tão cruel a ponto de punir-me pelo que ele fez... – Mostrava-se agora suave, defendendo-se, bem diferente de seu jeito de segundos atrás. Mas os olhos dele permaneciam duros e frios como o aço.
– Então admite que ele cometeu um crime?
– Sei que ele errou, sim. – Ele permaneceu em silêncio, e, para seu desespero, Julie sentiu as lágrimas aflorarem, prontas para escapar. – Que posso lhe dizer, o senhor não tem coração! – Não era verdade, ele tinha um coração... de pedra..
– Há dez anos atrás eu tinha um coração; se agora não o tenho, devo à sua família.
– Minha família, não eu. – Novamente se defendia, mas, vendo aquele rosto duro, sabia que suas palavras caíam em orelhas surdas.
– Os inocentes pagam pelos pecadores... Nós, os gregos, sentimos profundamente os erros de nossos parentes e nos empenhamos em repará-los.
– Não sou grega, sr. Lucian..
– Sente-se, Julie – disse, ignorando o aparte. – Beba mais um pouco de café.
– Ficarei, se o senhor concordar em falar de negócios.
– Negócios de casamento?
– Já lhe disse inúmeras vezes que isso está fora de qualquer cogitação!
– Isso é definitivo?
– É! – houve um breve silêncio. Doneus levantou-se. – Não há necessidade de ir embora já, pois seu navio não sai antes de três horas. Posso lhe oferecer um lanche?
– Não, obrigada. – Julie sentia o coração apertado. Tinha a convicção de que ele faria o que prometera. Não haveria uma saída? Seu pensamento voou para Lavínia, tão doce e loucamente apaixonada por Alastair. Sua vida seria arruinada! – Não posso imaginá-lo aparecendo na igreja – começou. – Seria muito cruel! Se o senhor conhecesse Lavínia... – Juntou as mãos num gesto de súplica, lembrando de como ainda ontem se sentia animada e esperançosa ao deixar sua casa. Agora tinha diante de si um pobre apanhador de esponjas com quem devia fazer um negócio; um homem rústico e teimoso demais para aceitar o dinheiro que lhe era oferecido. Isso não era o que esperara. Ele era um louco em recusar, pois esse dinheiro faria muita diferença em sua vida.
– Lavínia é tão jovem, sr. Lucian, e tão enamorada de meu primo. Nunca lhe fez mal algum e não é parente dos que lhe prejudicaram.
– Mas pretende sê-lo em breve.
– Mas é inocente! – gritou indignada. – Como pode pensar friamente em lhe partir o coração?
– A outra moça também era inocente... até seu querido primo agarrá-la – disse insensivelmente. – Não, Julie, não espere piedade de mim; sei o que digo. – Julie, de cabeça baixa, foi surpreendida pelo gesto inesperado de Doneus, que pondo gentilmente a mão morena sob seu queixo, forçou-a a levantá-lo para vê-la de frente.
– Intimamente, você sabe que pretendo -denunciar seu primo, não sabe?
Por um momento não pôde falar, eletrizada pelo seu contato. Deveria ter sido horrível, deveria ter sentido asco ao ser tocada por aquele homem, mas, no entanto, estava magnetizada pelo seu poder, e alguns segundos se passaram antes que dele se livrasse, mas ainda sentindo o calor e a força de sua mão.
– Sim – disse por fim, com os lábios tremendo. – Sim, sei que o senhor pretende denunciá-lo...
– Ainda está decidida a rejeitar minha oferta?
– Sua oferta? – Havia um certo sarcasmo na voz de Julie a despeito de como se sentia interiormente: morta e sem esperanças. – O senhor exigiu que eu fosse sua há muitos anos atrás.
Para sua surpresa, ele franziu a testa, parecendo não gostar de ter sido lembrado disso.
– Eu disse que você poderia ir para sua casa durante cinco meses do ano, Julie. Seu tio não lhe contou?
– A cigana, a grega, me disse.
– Enquanto eu estivesse no mar, aqui seria muito triste para você.
– Não estarei aqui, não importa sua ausência ou não; o senhor perde seu tempo discutindo o fato.
Ele apertou os lábios.
– Creio que você pensará melhor sobre tudo isso – e acrescentou suavemente –, na verdade, tenho quase a certeza.
– Sua certeza é quase tão ridícula quanto sua exigência. – Lindas e corajosas palavras, mas seu coração continuava apertado. Apanhou a mala, andou até a porta; deliciosa fragrância chegou-lhe ao olfato enquanto uma suave brisa balançava as flores. – E inacreditável que o senhor me peça para morar aqui, num lugar como este. – Andando em direção à claridade do sol, Julie se deu conta da proximidade dele e, a despeito de seu controle, sentiu-se corar.
– Que orgulhosa, madame! Não é minha casa boa bastante para a senhora?
Espantada, Julie virou-se. De tudo o que ouvira, isto provocou-lhe o maior impacto; confusa, zangada e indignada, olhou-o fixamente, e um longo silêncio reinou entre os dois. Jason veio até o dono, levantando a cabeça e olhando-o sem compreender por que as vozes se haviam calado.
– O senhor espera realmente uma resposta para tão absurda pergunta? – Deu um passo para trás, sentindo a marcante presença dele.
– Absurda, é? – Sua face se sombreara e seus olhos luziram. – A casa do marido é geralmente boa para sua mulher. Você ainda se acostumará aqui com o tempo; e isso temos bastante.
– Podemos pôr um fim a esta farsa? Onde consigo um táxi?
– Táxi? – repetiu divertido. – Você não disse a Stamati para voltar? – Sua voz não era mais áspera, parecendo até um pouco aflita. Que enigma era esse homem!
– Não pensei nisso. – Sua mente estivera ocupada com outras coisas, mas agora ela via que deveria ter dado maior atenção ao problema de voltar a Kalymnos. – Não há alguém por aqui que tenha um táxi? – Assim que perguntou, percebeu que tola era, pois o lugar era deserto.
– Temo que não.
– E não há ônibus?
– Táxis fazem as vezes de ônibus; você toma um e divide com as outras pessoas, mas não conseguirá um por aqui. Tem que andar até a cidade.
– Mas é muito longe!
– Não há outra maneira de você chegar à Kalymnos, pois o dolmus, isto é, o táxi, só estará aqui às duas e meia.
– Duas e meia? – exclamou. – O navio sai às três horas!
– Se sua intenção era não demorar, por que mandou Stamati embora? – perguntou ele impaciente.
– Não pensei nisso. – Sacudiu a cabeça desalentada e, repentinamente, seus olhos se encheram de lágrimas. Colocou a mala no chão e abriu a bolsa, procurando um lenço. – Vou perder o navio... – Limpou o nariz e, disfarçadamente, enxugou as lágrimas antes que caíssem. – Não há maneira alguma de chegar a Kalymnos antes das três horas?
Um longo silêncio seguiu-se ã pergunta. Quando, finalmente, estava certa de que as lágrimas haviam cessado, notou que Doneus fitava o castelo, cujas paredes, à luz do sol, brilhavam como ouro.
– Quando é o próximo navio, Julie? – Doneus ainda olhava para o castelo numa estranha atitude de indecisão.
– Amanhã à mesma hora. Mas eu não posso esperar. – Pensava naturalmente no quarto, nos mosquitos, na falta de água quente para se lavar. Depois de outro silêncio, Doneus lhe disse que poderia ficar ali, pois traria sua mãe para ficar com ela. A menção de uma mãe, tudo o mais momentaneamente saiu de sua mente.
– Era sua mãe aquela senhora quem eu vi na Inglaterra? – Os mesmos olhos, sobrancelhas espessas, os mesmos lábios cheios. Deveria ter sabido assim que vira Doneus, mas, não sabia por que, não pensara que ele tivesse mãe viva, apesar de não haver razões válidas que a levassem a essa conclusão.
– Era. Ela é encantadora, Julie, mas não creio que você tivesse achado naquela ocasião.
Sua mãe... Uma simples aldeã, com brincos e anéis de ouro e nos braços morenos, vários braceletes. Roupas pretas e, na cabeça, um lenço também preto.
– Sua mãe não mora com o senhor? Que esquisito morarem separados!
– Ela prefere seu cantinho. Os pais são assim...
Julie franziu as sobrancelhas. O mistério parecia mais denso.
– Não quero ficar aqui. – Agradeceu-lhe delicadamente e acrescentou: – Começarei a andar. Poderei arranjar uma carona com alguém.
Diante dessa firme recusa, o rosto dele tomou-se sombrio, e o coração de Julie começou a bater fortemente. Estremeceu, pois não havia razão para esperar algo de bom dele.
– Nunca conseguirá uma carona – afirmou, e os lábios dele tremiam enquanto novamente olhava para o castelo. – Posso pedir um carro emprestado... – As palavras vieram relutantemente como que impelidas por uma força incontrolável.
– Um carro? – Julie olhava-o incrédula. – De onde?
– Do castelo. – Curvou-se ao falar, coçando a cabeça de Jason.
– O senhor conhece-os o suficiente para poder pedir um carro emprestado? – Seu espanto o irritou.
– Você parece pensar que gente que mora em castelo não conhece alguém como eu?
Julie sentiu o sangue fugir-lhe das faces ao ouvir aquela voz tão calma e tão perigosa.
– Desculpe, senhor Lucian, falei sem pensar. Não há razão para presumir que eles não devam conhecê-lo.
Aceitando as desculpas sem comentário, disse:
– Entre e sente-se. Estarei aqui em dez minutos.
Julie obedeceu. Doneus foi até a cozinha para alguma coisa, e ela automaticamente chamou o cachorro.
– Venha cá, Jason. – O cão levantou a cabeça, mas não atendeu.
– Ele não entende inglês. Deveria dizer ela Jason – explicou ele de longe.
Jason foi até seu dono e Julie ficou silenciosa, sentindo-se muito inibida para pronunciar uma palavra em grego.
Doneus estava rindo ao voltar da cozinha, reparou Julie, e parecia diferente.
– Voltarei tão depressa quanto possa – prometeu, e chamou Jason, saiu. Alguns segundos depois, viu-o pedalando numa veloz bicicleta, com o cão correndo a seu lado.
Jason estava sentado no banco traseiro, quando o carro parou do lado da casa. Uma hora e meia depois, Julie estava a bordo do Lindos. Doneus a trouxera algumas horas antes de o navio estar pronto para zarpar. Quando embarcou, foi imediatamente para sua cabine, lá permanecendo até o barco sair, quando subiu para o convés. Enquanto a rochosa ilhazinha era visível, o povo permaneceu no cais acenando para os amigos e parentes que partiam.
Repentina e inacreditavelmente, Julie viu Doneus, bem no fim do cais, um pouco afastado do carro, e Jason junto dele. Sentiu um perto na garganta ao pensar que Doneus esperara duas horas ali ou em outro lugar qualquer, e então voltara... a tempo de o navio partir... com ela a bordo. Deu-lhe as costas angustiada. O que queria dizer tudo isso? Cedendo a um impulso, virou-se e, novamente viu sua mão morena lhe acenando adeus. Então viu Doneus abrir a porta do carro, Jason pular para o banco de trás e, segundos depois, lentamente, seguir pelo cais. Olhava fascinada, até ele desaparecer atrás da casa da alfândega. Mas, ainda assim, continuou olhar, e o carro apareceu outra vez, seguindo pelas ruas dos cafés tornando-se cada vez menor, até desaparecer por completo.


Capítulo IV


Durante toda a viagem de volta, Julie relembrava seu encontro com Doneus Lucian. Seu tio não mencionara o extraordinário físico do rapaz, nem seu ar distinto e aristocrático. Isso foram as primeiras coisas que ela se referiu ao chegar ao castelo de Belcliffe, no dia seguinte. Edwin ergueu as sobrancelhas e Julie sentiu o vermelho se espalhando pelo rosto. Tanto quanto Edwin, não entendia por que se referia a isso.
– Ele era alto e forte, mas não sou capaz de lembrar de nenhuma aparência fina ou ar aristocrático. – Uma gostosa risada ecoou pela sala. – Aristocrático, com efeito! Ele tinha aparência de um aldeão, roupas baratas e rotas, um ar geral de pobreza, como eu lhe disse. Bem, mas afinal o que tem sua aparência a ver com tudo o mais? Aceitou o dinheiro, suponho. – Os dois conversaram durante o chá, que fora trazido assim que Julie chegara. Na enorme lareira, as chamas ardiam e espalhavam pela sala sua luz e calor, formando sombras nas paredes revestidas de carvalho. Fora, o dia estava cinzento e nublado, tão diferente do claro céu azul e do sol de Kalymnos. Antes mesmo de se dar conta, Julie lembrava também a estampa de um homem de feições atraentes, de olhos negros e penetrantes, que certamente poderiam ver a alma de qualquer um; um homem com o nome de Hades... Reviu-o de pé, sozinho no cais, com o vento em seus cabelos, vendo o navio se afastar da ilha e lhe acenando um adeus.
– Julie, eu lhe fiz uma pergunta. – A voz do tio trouxe-lhe de volta à realidade. – Ele aceitou o dinheiro?
– Não aceitou. – Recostou-se na cadeira, com o pires e a xícara na mão. Por que estava tão calma? Estaria caindo na apatia da desesperança dos vencidos? Ou estaria fazendo o possível para se convencer de que Doneus não cumpriria a ameaça? Havia nele alguma coisa de tão nobre, tão acima de tal comportamento... Julie lembrava daquele momento quando quase lhe dissera não acreditar ter ele mandado o recado. Logo convencera-se de que a idéia era ridícula, pois ali estava ela conversando com ele. No entanto, em seu inconsciente ainda persistia a convicção de que um profundo mistério cercava os acontecimentos.
– Ei! – A face de Edwin estava cinzenta. Julie notou o nervosismo da mão quando ele pegou um pedaço de bolo para, logo em seguida, devolvê-lo ao prato. – Ele recusou duzentas libras, não acredito!
– Eu ofereci quinhentas, tio – informou Julie –, e ele quase riu na minha cara...
– Riu? De quinhentas libras? – perguntou espantado. –, mas em que circunstâncias ele vive?
– Extremamente pobres. – Julie se entregou novamente os pensamentos, ainda se debatendo num mar de conflitantes perguntas e respostas. Que Doneus Lucian gostaria muito de se casar com ela era evidente, apesar de não atinar por quê. E agora que tinha falhado em seu intento estaria resignado? A figura dele voltava constantemente à memória de Julie.
– A casa dele, Julie, como era?
– Era como o senhor disse, uma tapera, abandonada por dentro e por fora. De fato, parecia não ser habitada há anos, a julgar pelo jardim cheio de mato, apesar das lindas flores que cresciam misturadas. É evidente que há muito tempo atrás deve ter sido bem cuidada.
– Não compreendo – disse, sacudindo a cabeça –, esses apanhadores de esponjas devem cuidar bem de seus jardins, pois são forçados a cultivar suas próprias hortas durante os sete meses em que estão desempregados. Mas estamos somente em outubro – exclamou, como que achando a explicação – ele esteve fora desde abril; por isso o lugar está em abandono.
– Então por que não começou a limpar?
– Talvez ele pretenda.
Encerrando o assunto com um levantar de ombros, Julie contou tudo o que se passara entre Doneus e ela, mencionando também que a mulher que viera à Inglaterra era sua mãe.
– Ela não mora com ele – terminou, enquanto Edwin a fitava com uma expressão vazia. – O que significa isso? Se ela é viúva, e eu tenho a impressão de que é, ela e seu filho não deveriam morar juntos por razões econômicas?
Depois de alguns segundos, Edwin disse impaciente: – Estamos divagando. Se aquele miserável não quer o dinheiro, que quer então?
– O senhor sabe muito bem o que ele quer: eu!
– Que absurdo! Esse homem deveria ser posto atrás das grades!
– Ele não cometeu nenhum crime, que eu saiba. – Ela, muito calma, estava defendendo-o! O que estaria acontecendo com ela?
– Chantagem é crime!
– Sim, suponho que o senhor chame isso de chantagem – concordou depois de uma pausa. Uma idéia brotou-lhe de repente. – Ele está atrás de alguma coisa, mas o quê? A não ser que esteja completamente fora de si, deve saber que a idéia de um casamento entre um aldeão grego e uma moça de nosso nível é impossível. No entanto, recusou receber quinhentas libras...
Edwin exclamou encarando a sobrinha com súbita compreensão:
– Já sei, ele está atrás de um peixe maior!
– Eu não entendo...
– Se ele sabe tanto a nosso respeito, deve ter sido avisado de que você tem direito à sua própria fortuna e é atrás disso que está! Honestamente acredita que pode forçá-la a se casar com ele e levar um bom dote! Meu Deus, o homem não é louco! É fácil perceber por que rejeitou a idéia de receber quinhentas libras.
Julie empalideceu. Seria essa a explicação? Certamente era a única possível; mas por que seu coração batia tanto? Por que quando tivera a prova clara de sua infâmia, continuava com a esperança de que ele fosse um homem honrado? A explanação do tio estava correta: Doneus queria casar-se com uma mulher rica.
– Que faremos? – Edwin parecia deprimido. – Se Alastair não se casar com Lavínia, estaremos perdidos. Será um desastre!
O coração de Julie saltou dentro do peito.
– É tão má assim a situação?
Seu tio levantou-se da cadeira e começou a andar pela sala, esquecendo-se do chá.
– As coisas vão de mal a pior. Ambos, Alastair e eu, estivemos jogando na esperança de salvar a situação.
Julie, sentada, olhava-o andar pela sala com os olhos no chão. Experimentou falar, acusá-lo, mas que vantagem havia em recriminá-lo agora? Depois de algum tempo perguntou se seu dinheiro seria suficiente para pôr as finanças em ordem, mas seu tio sacudiu a cabeça.
– Em primeiro lugar eu não aceitaria e, em segundo, de nada adiantaria, pois esta casa está hipotecada.
Fitou-o incrédula.
– Esta casa... nosso lar? Tio, como pôde, jogando, perder tanto?
Ele sentou-se e pôs a cabeça entre as mãos. Julie, vendo-o assim, lembrou da decepção e raiva que sentira ao saber da promessa que este fizera a Doneus Lucian há tantos anos atrás e da sua conseqüente convicção de que não mais poderia permanecer naquela casa. Agora, vendo-o naquela cadeira, abatido e desesperado, esqueceu tudo, exceto o fato de que ele a criara como sua própria filha, amando-a e cuidando dela com mais carinho do que com seu próprio filho. Veio até ele e, ajoelhando-se ao lado da cadeira, abraçou-o ternamente.
– Tio, não fique assim, tudo acabará bem... Doneus nunca virá aqui; eu sei que não. – Ditas estas palavras, sentiu a mais singular sensação. Toda a ansiedade terminou; era como se Doneus Lucian lhe estivesse dizendo através das terras e dos mares que os separavam que não tinha a intenção de levar a cabo sua ameaça. – Ele nunca virá aqui, querido. O casamento se realizará sem problemas.
Edwin levantou a cabeça, e o coração de Julie se confrangeu ao ver lágrimas em seus olhos. Um homem chorando! Haveria visão mais triste do que esta?
– Por que está tão certa? – Ela pousou as mãos sobre os ombros do tio e este as cobriu com as suas. – Você disse que era você que ele quer, ou virá até aqui.
– Isso foi o que ele disse, mas não o fará. – Todo o seu ser parecia exultar em triunfo: um triunfo nascido da certeza de que Doneus Lucian era por demais honrado e correto para cumprir a ameaça.

Julie só o viu quando chegou bem perto dele, e levou tamanho choque que tropeçou no primeiro degrau da escadaria da igreja; e teria caído, não fossem os fortes braços ao redor de seu corpo a ampará-la. O contato! Por um fugaz momento, tudo fugiu de sua mente, menos isso...
– Você está linda, Julie. – As palavras, suaves como uma brisa de verão, foram sussurradas a seu ouvido, antes de ele dar um passo atrás para não atrapalhar o cortejo nupcial. Atônita e incrédula, com o coração pulsando selvagemente, Julie deu um passo vacilante e saiu do alinhamento.
– Mas, Julie – cochichou Cheryl, olhando de relance o alto estrangeiro, que vestia um barato mas bonito temo marrom, a camisa muito alva contrastando vivamente com sua pele morena. – O que houve?
– Tive uma ligeira tontura. – Era verdade. Nunca, em toda sua vida, Julie recebera um choque maior. Estivera tão convencida d, que ele não viria... mas viera e isso a abalara... e causara outra vez a mesma dor que sentira quando seu tio afirmara que ele estava atrás de sua fortuna, recusando as quinhentas libras porque estava querendo um peixe maior... Bem, era isso ou então estava possuído de uma louca mania de vingança, querendo tê-la como esposa para, fazendo-a sofrer, sentir-se compensado por tudo o que sofrera nas mãos de seus parentes. Em meio ao seu grande terror e confusão, parecera-lhe ver um demônio, quando olhara dentro daqueles olhos negros e penetrantes.
– Então veio! – Excitadíssima, via por todos os lados convidados, fotógrafos e pessoal de imprensa. – Eu não pensei que o senhor viesse!
– Eu lhe disse que viria e você mesma afirmou que sabia que eu cumpriria minha palavra. – Era imaginação ou havia uma nota de desespero em sua voz? Julie reagiu; não havia tempo para pensamentos...
– Sabia que sim, mas depois preferi pensar que o senhor era um homem honrado.
– Sou totalmente sem honra, como seus parentes. Depressa! Aceite minha proposta ou entro lá. Nunca se casarão... e, Julie, sua família estará arruinada!
Inconscientemente estendeu ambas as mãos para ele e viu-o olhá-las de modo muito estranho. Notou também o pulsar de um nervo junto à cicatriz, o que lhe deu alguma esperança.
– Vá embora, sr. Lucian, eu lhe peço! Lavínia nunca o magoou...
– Meus interesses não estão nos Jarrows, mas nos Veltrovers.
Seus olhos negros fitaram significativamente a igreja, enquanto atirava para trás sua arrogante cabeça num ar de vitória, e Julie sentiu novamente tomada de incerteza e desespero. Seria esse o esforço final dele para submeter os Veltrovers à sua vontade? E se falhasse, iria a embora, deixando-os em paz? Tudo isso passava como um turbilhão pela cabeça de Julie, que no entanto não ousava virar-se e entrar na igreja, deixando-o ali.
– Sr. Lucian, eu lhe peço, eu lhe imploro... – Pensava em Lavínia no altar, olhos brilhando, coração batendo rápido, sem dúvida, pois a cada momento estava mais próxima de ser a esposa de seu ídolo.
– Não estou brincando, Julie. – Doneus falava a seu ouvido. – Não só pretendo denunciar Alastair, como também contar que os Veltrovers estão arruinados e interessados no dote da moça!
– Alastair a ama.
– Não mencione Alastair ou amor. Quero sua promessa agora e depressa! – Sua voz era venenosa e seu olhar odioso.
O último vestígio de cor deixou as faces de Julie. Apenas vagamente tomou conhecimento de um fotógrafo que captava a cena.
“Deus, me ajude! Faça com que este homem vá embora daqui”, rezou ela, mas preciosos momentos estavam se escoando e tudo que ela recebeu em resposta foi:
– Decida-se, Julie! Agora, ou entro nesta igreja!
– Não! – Um espasmo arrepiante percorreu-a toda. – Eu não p... posso me casar com vo... cê... – Sua voz era falha e sentia como se todo o mundo tivesse desaparecido e ela estivesse sozinha com aquele homem... sozinha e inteiramente em seu poder. – Eu lhe p... peço...
– Somente, por sete meses, Julie. Pense! Durante cinco meses você pode voltar para sua família. Isso é quase meio ano.
Ela o fixava com seus lindos olhos enevoados, suas pálpebras trabalhando rapidamente para disfarçar as quentes lágrimas de desespero e medo. Sete meses, dissera ele! – Depressa! – Ouviu-o dizer novamente, sempre olhando a porta da igreja. Parecia que ele lutava não só com o tempo, mas por sua própria vida. – Depressa! – Sete meses... Ser sua esposa, sua mulher, como dizem na Grécia. Obedecer suas vontades e seus desejos durante sete meses cada ano, levada para as profundezas escuras do submundo. Ele fez um movimento de quem ia se dirigir para a porta da igreja.
– Muito tarde! Vou entrar.
– Não, espere! – Agarrou seu braço, seu cérebro mal conseguindo funcionar e gritou em desespero total: – Farei um trato com o senhor. – Não daria certo, tinha certeza, mas no momento sabia que pelo menos tinha conseguido atrasá-lo um pouco. – Eu me casarei com o senhor e ficarei lá sete meses cada ano... mas será um casamento pro forma.
– Pro forma? Como pode um casamento ser assim?
– Eu não o conheço. – Agora Julie chorava, inconscientemente torcendo as mãos. – Como poderia viver com você sendo sua esposa? Não – disse finalizando, o que trouxe um lampejo de tristeza aos olhos dele. – Ou então entre; nada mais posso fazer para detê-lo.
Ele não se moveu e, por alguns segundos, examinou o rosto transtornado, lindo e pálido, os olhos sombreados agora pela total aceitação da derrota.
– Concordo com suas condições, Julie. – Estava calmo e não deixava transparecer qualquer emoção.
– Você manterá sua palavra? – Nos negros olhos dele, procurava descobrir algum sinal de falsidade, quando o ouviu dizer indignado:
– Nunca quebrei minha palavra, Julie! – E ela sabia que podia confiar. Quando ele lhe sorriu, reconheceu que não o odiava, mas estranhamente se sentia ferida de um modo que não chegava a entender.
– É melhor você entrar, agora – avisou, acrescentando: – Eu lhe telefonarei amanhã para combinarmos tudo sobre nosso casamento.
Ela não se moveu. O que havia feito? Uma terrível desolação prendia-a com suas garras e ela sentiu que não se livraria dela... até o fim de sua vida...
– Você não me pediu garantia de que cumprirei minha palavra! – O toque de um sorriso curvava seus lábios.
– Não é preciso, minha querida. Assim como eu, você nunca quebra sua palavra...

Estavam no pátio. Julie lia um livro, mas de vez em quando levantava os olhos, vendo o rosto moreno do marido. Cada vez que isso acontecia, sentia uma estranha inquietação. Mantivera sua palavra, casando-se com ele e vindo para Kalymnos, a despeito da forte oposição de seu tio, que, pouco ligando para os sentimentos de Lavínia, afirmava que se o casamento tinha sido realizado nada mais havia a temer. Lavínia logo esqueceria tudo, acrescentou, mas Julie sacudiu a cabeça.
– Eu fiz uma promessa solene, tio.
– Sob pressão, como eu fiz há dez anos atrás. Por que ainda vive esse homem? Por que não sofreu um acidente como tantos em sua ilha e morreu de uma vez?
– Não! – A simples palavra foi uma explosão de protesto, e o grito atordoou seu tio. Julie desviou a cabeça, seus nervos tremendo, só em pensar que Doneus pudesse ser vítima das traiçoeiras águas do mar, morrendo, ou, o que seria pior, ficando aleijado para o resto de sua vida. Seria ele vítima de um acidente algum dia? Fechou os olhos, imaginando como podia sentir-se assim; preocupada com a segurança de um homem que nada significava para ela. Devia ser horrível essa ameaça para as mães, irmãs e mulheres que amavam seus maridos. Por que tinham os homens que viver tão perigosamente?
– Você não vai se casar com um aldeão, ainda mais um estrangeiro! – dissera Edwin, decisivo e prepotente. Mas Julie, que ainda recentemente lhe dissera que Julgava os homens por sua honra e integridade, se recusou voltar atrás na palavra dada.
– Você estará longe daqui em uma semana – declarara Edwin, enfurecido com a teimosia de sua sobrinha em cumprir uma promessa feita sob tal pressão.
Os pensamentos de Julie foram interrompidos quando Doneus, abandonando uns papéis que estivera examinando, perguntou-lhe sorrindo:
– O que é Julie? Você estava tão absorta...Não posso participar de seus segredos? Só algumas vezes? – Sua voz era gentil, persuasiva, mas nem de longe humilde. Desde o princípio, ele se considerara igual a ela, que por sua vez só se lembrava de que ele era um aldeão quando pensava em sua mãe, ou quando olhava para sua casa. Para aquela casa miserável, ele a trouxera; a ela, Julie Veltrovers, do Castelo de Belcliffe, um mês atrás.
Seus adoráveis olhos cinzentos encontraram os dele. Doneus lhe dissera uma vez que os olhos dela eram reveladores. Então por que simplesmente esperava uma resposta sem dar mostras de ter interpretado seu silêncio?
– Não tenho segredos, Doneus. – Como a dele, sua voz era gentil e delicada, e não áspera como tantas vezes tinha sido antes.
– Diga-me no que estava pensando.
– Em minha casa, naturalmente.
– Sua casa? – A expressão dele era de censura; mas ela o encarava firmemente quando respondeu:
– Minha casa é na Inglaterra, você sabe disso.
Desordenadas videiras estendiam-se pelo telhado do terraço e caíam pelos lados, livres e sem suporte. Pelas frestas do chão, centenas de formigas corriam apressadas. A pintura dos pilares de madeira estava descascando, e partículas do estuque caíam de vez em quando.
– Diga-me Julie, você fica sentada aí o dia inteiro, gastando seu tempo, como se só estivesse esperando eu ir embora para poder voltar à Inglaterra?
– Naturalmente que sim. – Assemelhava-se a Perséfone que também esperara na prisão escura de seu marido pelo dia de tomar a ver a luz do sol. Cinco meses Julie teria, a começar da Páscoa, mas no momento não quis estender-se mais sobre o assunto. Não queria pensar como seria recebida pelo mundo elegante em que vivia, nem nas perguntas que inevitavelmente lhe fariam as amigas, curiosas que estavam, pois Edwin lhes dissera que ela havia se casado com um estrangeiro, que estava morando com ele numa ilhazinha grega. Também não queria pensar no dia em que expirassem os cinco meses e deveria voltar para a ilha e para o homem que era seu marido.
Viu-o perdido e infeliz em suas considerações quando este lançou-lhe um olhar por cima dos papéis que estavam sobre a arruinada mesa do terraço.
– Então, se eu fosse embora amanhã, você ficaria feliz?
Certamente. Era verdade... mas por que este súbito temor em seu coração? Doneus ferido... Rapidamente afastou esses pensamentos, enquanto observava suas mãos morenas e bonitas, apanhando alguns papéis que deixara no chão junto da cadeira e colocando-os numa pequena pasta. Que seriam aqueles papéis que ele tão freqüentemente examinava? Notara que alguns eram escritos em grego e outros em inglês. Onde ele os guardava? Os escondia em algum lugar... não dentro de casa, pois, um dia, vencida pela curiosidade, ela os procurara por todos os lugares possíveis, sem achá-los.
– É uma longa espera até a Páscoa, Julie. Por que não faz uma tentativa de se adaptar? – Sempre lhe falava assim, como se fosse seu único desejo que ela aceitasse seu destino, resignando-se a morar naquela casinha de três quartos, com rústica mobília, bomba-d’água no quintal e sua colmeia um pouco distante, sob a sombra de uma frondosa árvore. Doneus lhe mostrara como amassar pão; acendera o fogo sob o fomo de barro, usando pedaços de madeira que estavam por ali espalhados e os colocara dentro. Dali a pouco tempo, lindos e cheirosos, lá estavam eles prontos. Eram redondos e tostados, e Doneus espalhara sementes de gergelim sobre eles. Julie a tudo observava, feliz com a diversão inesperada, pois se aborrecia de manhã à noite. Mas assim que Doneus, sorrindo encorajadoramente, sugerira que ela experimentasse amassar um, gravemente recusara, lembrando-o de quem era ela.
– Em casa eu nada fazia. Não pretendo ser sua escrava, Doneus. – E ele deixou passar, afastando-se dela como se temesse dizer alguma coisa de que mais tarde se arrependesse.
A resposta de Julie deixara claro que ela não tinha a menor intenção de se adaptar ou de fazer algo. Os olhos dele brilharam num de seus raros instantes de raiva, mas momentos depois estavam calmos.
Doneus sempre parecia estar em guarda; às vezes cauteloso, outras conciliatório, mas nunca humilde. Observando-o, Julie ponderava, embora vagamente, o temperamento forte que ele possuía, imaginando se um dia chegaria a compreendê-lo.
– Você se considera superior a mim – disse gentilmente – e isso é uma barreira para a sua felicidade. Se você se acostumasse a me ver como um igual, conversaria, passearia e comeria comigo. – Sua voz era quase um sussurro e, no final, Julie mordeu os lábios. Por que não o odiava? Qual seria o feitiço com o qual ele a mantinha presa, apesar de se conservar sempre distante dele? Essa conversa não era comum, pois quando ele aparecia no terraço ela se levantava e entrava em casa, ia dar um passeio pelas montanhas. Hoje, entretanto, ficara, não sabendo o porquê.
– Você parece se esquecer de que estou aqui contra a minha vontade...
– Você não precisava ter se casado comigo, Julie.
Os olhos dela estavam distantes e tristes, mas sem vislumbre de acusação. Sabia o quanto se sentira ferida, quando, do lado de fora da igreja, Doneus aparecera e depois prometera cumprir sua palavra. Naquele momento sua presença a aturdia, mas ela não sabia a razão. Agora, porém, tinha a resposta. Doneus a desapontara pelo fato de ter ido à Inglaterra. Ela tinha em seu subconsciente formado a figura de um homem honrado; um homem a quem a chantagem parecia abominável, pois estava acima dessas coisas. Embora tivesse, agido um dia com a mentalidade de vinte anos, ela imaginara-o agora uma pessoa diferente: um homem com idéias precisas de justiça e dignidade. Mas ele não era, coisa que ela descobrira à custa de sofrimentos. O impiedoso Doneus a fazia pagar pelo erro de outra pessoa.
– Talvez não; mas você me deu um ultimato. Eu ainda afirmo que estou aqui contra minha vontade e somente a promessa de cinco meses de liberdade é que me influenciou. Pelo resto de meus dias estarei morta durante sete meses por ano. – Julie parou, vendo a expressão de seu marido que parecia ter sido ferido irreparavelmente. A cicatriz aparecia mais, pois um nervo junto dela se mexia incontrolavelmente. Olhava-o fascinada, quando Doneus, cobrindo a face com a mão, escondeu-a de sua visão.
– Então você só vive durante os cinco meses que está longe de mim? – Algo de impressionante em seu tom de voz obrigou-a a dizer depressa:
– Doneus, eu lhe perguntei tantas vezes, por que se casou comigo?
– Falemos de outra coisa, Julie – cortou abruptamente.
Um breve silêncio se seguiu enquanto ela o fixava, confusa com suas evasivas. Deveria haver uma séria razão para que ele tivesse se casado com ela. O barulho de uma folhagem do jardim chamou sua atenção. As pesadas folhas da bananeira caíram, arrancadas pelo forte vento que vinha do mar. As folhas da laranjeira também farfalhavam, brilhantes e escuras, de encontro aos frutos pendentes de seus galhos. As laranjas estavam maduras, mas Doneus não tinha interesse em colhê-las, pois recebia tudo do que necessitava do castelo, onde trabalhava como jardineiro e em outros serviços. Os atuais proprietários, ricos americanos, estavam fora, tendo deixado a ilha alguns dias antes da chegada de Julie, que por isso ainda não os vira. Estariam fora por um ano, dissera Doneus, impaciente com suas perguntas. Estavam visitando parentes no Texas e, durante sua ausência, Doneus ficara encarregado de tomar conta. Isso era tudo o que Julie sabia. Os americanos deviam estar lhe pagando um bom salário para tomar conta da propriedade. Por duas vezes, Doneus a convidara para jantar com ele no hotel de Pothaia, mas ela recusara.
– O que temos você e eu para conversar? – perguntou ela e impacientemente seu marido sacudiu a cabeça.
– Você simplesmente não quer conversar. – Virou-se, pois Jason vinha latindo pelo jardim, agitando o rabo e com a língua de fora. – Está com sede? – Milagrosamente as suas feições se suavizaram quando agradou a dourada cabeça do cachorro. – Você não precisa me olhar desse jeito. Eu disse que você tem que aprender o inglês. Venha, vou lhe dar água.
Julie viu Doneus entrar na casa, passar pela sala e ir até um alpendre nos fundos, uma espécie de cabana, onde havia um tanque comum e uns peculiares petrechos de madeira, que eram usados para lavar roupa, como ele lhe explicara. A pedra de esfregar a roupa estava muito gasta, provando que gerações e. gerações de mulheres ali haviam gasto preciosas horas da vida. Estava ainda olhando para a sala quando ele voltou trazendo a bacia de água de Jason. Seus olhares se cruzaram por um momento enquanto Doneus passava pelo pequeno terraço, dirigindo-se para a bomba-d’água. Julie sentiu-se culpada e magoada quando ele a olhou daquela maneira, mas não podia atinar com o porquê.


Capítulo V


Alguns momentos depois, com Jason bebendo agradecido a fresca água de sua bacia, colocada no chão em frente ao terraço, Doneus lhe disse pesaroso:
– Desculpe ter lhe respondido mal.
Desviou a cabeça, sentindo-se mais culpada do que nunca e mais magoada também. Por que era ele tão obsequioso e delicado? Por que parecia sempre determinado a fazer qualquer esforço para não discordar dela?
– Não é que eu não queira conversar, Doneus – disse finalmente –, mas você se recusa a falar sobre coisas que me interessam. – Ele lançou-lhe um penetrante olhar, mas ela continuou firme: – Esta casa, por exemplo.
Por um momento cerrou os lábios antes de responder: – Coisas materiais? É tudo que lhe interessa? – Uma certa inflexibilidade em sua voz fê-la sucumbir. – Não, Julie, não aceitarei seu dinheiro para reformar este lugar. Eu lhe disse por ocasião de sua primeira visita que a casa do marido deve ser suficientemente boa para sua esposa. Você se acostumará com meu lar e, até quem sabe, descobrirá algum encanto em sua humildade. – Parou, dando-lhe a oportunidade, de falar, mas Julie permaneceu silenciosa e ele continuou: – Felicidade e alegria se tem quando se conhece o real valor das coisas, Julie. O que realmente importa são os seres vivos. Os objetos inanimados podem ser entesourados por seu valor estético ou inutilidade, mas nunca considerados indispensáveis. A vida, sim.
Levantando a cabeça, seus lindos olhos encontraram os dele. Seus lábios tremiam visivelmente, evidenciando a emoção que ele despertara nela. Doneus parecia incapaz de tirar os olhos dela, olhos que, a despeito de sua dureza, mostravam perfeitamente saber como ela estava se sentindo.
– Meu tio acreditava que você estava interessado no meu dinheiro – murmurou, enquanto um sorriso complacente iluminava o rosto de Doneus antes de responder:
– Era de se esperar tal conclusão de Edwin Veltrovers que dá tanto valor ao dinheiro. Não, Julie, sua fortuna não me interessa nem um pouco. Gaste seu dinheiro quando for para casa. Aproveite-o da maneira como está acostumada, mas, enquanto estiver aqui, contente-se com o que eu posso lhe dar.
– Diga-me: por que quis se casar comigo? – Doneus sorriu-lhe e disse:
– Sempre a mesma pergunta, Julie? – Desviou os olhos, e sua atenção foi despertada por uma pequena lagartixa que, bem perto dos seus pés, caçava insetos numa incrível rapidez, usando sua comprida e escura língua. Jason também a viu, mas imediatamente perdeu o interesse. Deitou-se no chão poeirento, esticou as patas dianteiras e descansou o focinho nelas. Como estivera correndo por ali, agora só queria dormir. Doneus voltou a prestar atenção na esposa e esta lhe lembrou da pergunta que fizera, acrescentando:
– Você sempre vem com evasivas e não responde. – Sua voz era suave, pois ela estava pensando naquela outra moça com quem ele deveria ter se casado e no quanto sofrera pela inconseqüência do primo. – Você não se casou comigo por meu dinheiro, nem por... por... – parou, baixando a cabeça, em parte porque um súbito rubor lhe coloriu as faces, mas principalmente porque ela estava no momento se lembrando com extrema clareza da cena quando Doneus a trouxera como noiva para sua humilde casa. Dissera-lhe na ocasião com sua voz profunda e cheia de emoção:
– Nunca voltarei atrás em minha palavra, Julie. Mas se um dia você vier a mim espontaneamente, eu serei humano. Aceitarei o que me é oferecido... mesmo sabendo que você veio para cá num momento de fraqueza e que amanhã, certamente, já estará arrependida. – Fizera uma pausa, mas ela estava muito confusa para responder. Ele sorrira fracamente enquanto continuava: – Uma vez que você venha para mim, será para sempre. Não sou homem a quem se dê para provar um néctar e depois se retire a taça das mãos.
Pela primeira e única vez, Julie fora arrogante:
– Nunca irei a você espontaneamente. Você é muito presunçoso, se imagina tal possibilidade. – Toda a inata altivez de Julie, que como uma couraça escondia um terno coração, viera à tona. A atitude de Doneus modificara-se inteiramente. Seus olhos tomaram se frios e seu sorriso desaparecera, enquanto dizia:
– Não me considera digno de tocá-la?
Julie olhou-o com profundo desdém, e palavras de indignação lhe vieram aos lábios, mas ela não chegou a pronunciá-las, pois lembrou-se da emoção que sentira a seu contato: a primeira vez, quando o conhecera, ele, colocando os dedos sob seu queixo, obrigara-a a levantar a cabeça; depois na frente da igreja, quando seus braços fortes a sustentaram para que não caísse...
As reflexões de Julie foram interrompidas pela voz de Doneus terminando o que ela própria começara a dizer:
– Por seu físico? – Brutal franqueza, dita em tom suave...
– Então por que, Doneus? – Obrigou-se a encará-lo.
– É preciso haver uma razão?– Brincava distraído com o fecho da pasta que estava sob a mesa, em seus joelhos.
– Havia uma razão muito boa. – Doneus parou, mas Julie continuava esperando. – Você é a reparação que me foi prometida há dez anos atrás.
– Então foi só por vingança? Você me exigiu e desde então não pensou em mais nada além disso? – Nebulosas e conflitantes sensações. Esse homem tinha o nome de Plutão... e sua mente era tão insondável quanto a do deus do negro mundo subterrâneo...
– Nunca deixei de pensar nisso um só segundo de minha vida – tomou ele gentilmente, depois de uma pequena pausa. – Antes, vivia preocupado unicamente com minha vida – falava pausadamente, como que escolhendo as palavras cuidadosamente –, contudo, com o passar do tempo, meu pensamento se voltou para a moça que me havia sido prometida.
Julie tinha os olhos semicerrados, mais por causa do sol do que por outra coisa.
– Esse pacto é uma coisa que eu não entendo, Doneus, e creio que nunca entenderei. A única coisa que sei é que nossas relações não têm sentido.
– Você gostaria de alterá-las? – interrompeu rapidamente, divertido com a súbita palidez de Julie.
Naturalmente ela ignorou a pergunta, murmurando quase que só para si mesma:
– Não têm sentido porque você não está lucrando nada com isso.
Doneus fitava a pequena lagartixa, que graciosamente continuava a apanhar suas presas.
– Estou tendo satisfação, Julie. Recebi reparação de uma ofensa que me foi feita quando eu ainda era muito jovem.
– Você é enigmático. Nem sei mesmo por que me dou ao trabalho de tentar entendê-lo.
O sorriso dele mexia com seus nervos porque era o sorriso de um homem solitário. No entanto, isso não era verdade. Durante cinco meses do ano ele estava com outros mergulhadores. Homens que, como ele, desafiavam as profundezas do oceano, cientes do perigo que os cercavam e cientes de que quando ficassem muito velhos para o trabalho teriam que se retirar e viver de suas memórias.
– De qualquer modo, parece que você faz um esforço para me entender.
– É natural. Eu não tenho mais nada para fazer – bateu as mãos no colo, num gesto de resignação, o que causou nele um efeito singular. Parecia intimamente triste.
– O que gostaria de fazer, Julie?
Julie deu um pálido sorriso e fez um ligeiro gesto de abandono com a mão.
– Gostaria de saber! – Surpreendeu-se dizendo. Por que não a abandonava essa nova e constante sensação de desassossego? Pensava no castelo de Belcliffe e nos cinco meses que passaria lá, mas essa incontrolável sensação nada tinha a ver com a sua casa na Inglaterra. – Acho que vou dar um passeio – disse olhando para Doneus e querendo finalizar a conversa. Por que finalizá-la? Sabia que, durante o último quarto de hora, Doneus se sentira feliz e agradecido pela sua companhia. Isso era evidente na expressão de seu rosto, que com as palavras dela se transformou em desapontamento e resignação. Subitamente, seguindo Jason com os olhos, que se deitara à sombra de uma árvore, disse com singular inflexão na voz:
– Leve Jason com você.
Que estranha coisa a sugerir. Ele sabia que Jason não a acompanharia a não ser que fosse junto.
– Ele não virá comigo, não se você estiver por perto. – Começou a andar, saindo do terraço em direção ao jardim.
– Chame-o!
Julie virou-se olhando o marido numa expressão confusa.
– Sabe muito bem que ele não o abandona.
– Chame-o – repetiu Doneus, e, com um levantar de ombros, ela assim o fez. Jason levantou-se imediatamente, mas ficou parado, indeciso, olhando de um para outro.
– Venha, Jason. ela. – O cão deu dois passos na direção dela, mas depois parou olhando novamente para o dono. – Viu? – Julie estava extremamente confusa com o comportamento do marido. – Ele não deixa você.
Doneus levantou-se e num instante estava ao lado dela.
– Parece que terei que ir com você, pois tenho certeza de que Jason gostará do passeio.
A manobra fora tão clara que o coração de Julie disparou. Como Doneus tivera um pouco de sua companhia, relutara em deixá-la ir.
Lembrava-se do tremor na voz dele quando ainda há pouco dizia:
“Se você se acostumasse a me ver como um igual, conversaria, passearia e comeria comigo”. Fizera toda aquela manobra para ficar um pouco mais junto dela. Julie sentiu um aperto na garganta. Doneus era um homem solitário, desesperadamente solitário. Pensou em como seria a vida dele agora se tivesse casado com a noiva de tantos anos atrás. Teria sua mulher e filhos à sua volta... Julie levantou a cabeça, sorrindo encantadoramente.
– Tem razão, Doneus. Jason adoraria dar um passeio. – A doçura de sua voz fez com que Doneus procurasse seus olhos, como quem pesquisa e procura... O quê? Continuava parado, suas emoções visíveis... felicidade, gratidão e prazer. Enquanto os momentos passavam, uma secreta e profunda emoção tomava conta dela. Algo que exigia séria introspecção, mas não ousava examinar seus pensamentos, e, para disfarçá-los, dirigiu-se a Jason, que permanecia junto deles:
– Agora você vem? Agora que seu dono vem junto?
Doneus sorriu e, encorajado por essa inesperada mudança, estendeu a mão. Pela primeira vez ele fazia isso. Julie reparou nas veias e nos longos dedos daquela mão morena. As mãos de um apanhador de esponjas deveriam ser fortes, pois teriam que agarrar e arrancar as esponjas das rochas.
– Vamos, então? – disse ansioso para acabar com sua hesitação.
Ela ainda fixava sua mão, metade dela ansiando por colocar sua pequena mão na dele e a outra metade se desprezando por não odiá-lo por isso. Deu um pequeno passo para o lado, vendo a mão cair desanimada enquanto ele dizia alguma coisa em grego para Jason.
Julie ouviu, pensando em quantas horas de solidão Doneus teria passado, só tendo o cão para conversar. Lágrimas lhe vieram aos olhos e ela daria tudo para voltar àquele momento em que ele lhe estendera a mão.
– Por onde iremos? – Tinham começado a andar, passando pelo jardim e chegando à estrada de terra.
– Você escolhe, minha querida. – Doneus parou esperando que ela decidisse. Ela mostrou um ponto ao norte da ilha de onde parecia possível atirar uma pedra na ilha de Leros. Julie ia freqüentemente até lá, vagueando pela costa rochosa, pisando o chão ocre, salpicado de pedras. Era uma paisagem solitária e selvagem, onde apenas umas poucas corajosas plantas cresciam nos raros pedaços de terra.
Deixaram o pequeno e descuidado jardim da casa, onde trepadeiras vermelhas floriam, e se dirigiram para o mar. Passaram por uma mulher que pastoreava seu rebanho de cabras e seguiram adiante, sempre ouvindo o som dos sininhos que chegava até eles através do ar puro e cristalino. Ao fim da estrada de terra, da qual Julie se lembrava tão bem, quando Stamati a trouxera pela primeira vez a casa de Doneus, viraram à direita, costeando o mar e seguindo em direção ao castelo. Este era o último sinal de habitação, antes de entrarem na estranha e deserta paisagem, onde a única evidência de atividade humana era uma sereia de bronze em tamanho natural, sentada numa rocha e tendo uma lira nas mãos.
– Tive um choque a primeira vez que a vi – disse Julie meia hora depois de terem admirado a linda figura da sereia. – Foi tão inesperado... – Julie estava rindo alegremente. – Num lugar tão desolado, só de montanhas e terra nua, tendo ao longe a ilha de Leros... – interrompeu-se baixando os olhos ao ver a expressão do marido, dando-se conta de que era a primeira vez que ela ria despreocupadamente desde que chegara a Kalymnos. Doneus estava fascinado. Disse qualquer coisa em grego, como que temendo que ela entendesse e retomasse seu ar de altivez novamente.
– Você é a mais linda moça que eu já vi em toda a minha vida, Julie – disse suavemente.
Fixando-o, lembrou-se de que uma vez ele já lhe havia dito que ela era linda, mas na ocasião não dera importância; agora, uma onda de ternura tomou conta dela. Negar o encanto desse homem era impossível. Como nenhum outro homem, ele a impressionava. Edward, a quem a mãe de Doneus se referira, parecia insignificante, comparado a esse grego moreno, de personalidade marcante e ar de fidalguia. Como podia ele ter uma mãe como aquela? Julie lembrava-se do dia em que, uma semana depois de sua chegada, Doneus lhe perguntara se não queria ver sua mãe. Ela lhe respondera que não queria ver de novo aqueles olhos a sua frente.
– Aquela sereia... aquela sereia me parece tão solitária, sentada ali, cercada pelo mar e pelas montanhas...
– Você Já falou antes da solidão dela, minha querida – disse rindo.
Notou que ele se divertia e riu também.
– Vamos voltar? – sugeriu por fim.
– Como quiser. Por mim, iríamos mais adiante.
– Você também gosta muito desta parte da ilha? – perguntou, revelando seu entusiasmo.
– Sim, Julie, gosto muito.
– Então vamos continuar.
Caminharam em silêncio por um tempo, com Jason correndo na frente, com a língua de fora, como se estivesse novamente com sede. Pela primeira vez desde a sua chegada, Julie estava feliz. A paz desse lugar maravilhoso hoje parecia diferente e ela sabia que a única razão era a companhia do marido.
– Será que você experimenta a mesma sensação que eu quando está aqui? – Doneus parara, olhando ao redor. A torturada rocha de lava onde estavam despencava-se até o mar; acima deles, as montanhas resplandeciam ao sol, nuas e selvagens. Pouco além da praia, uma pequena ilha que deveria ter pertencido à Kalymnos em tempos idos. Casinhas brancas espalhadas pelas encostas com frondosas árvores entre elas. O gracioso campanário da igreja, brilhando à luz do sol, e, mais além, Leros, numa incrível variedade de cores.
– Paz, Doneus; é isso o que você sente? – Notou a serenidade de suas feições, completamente relaxado e, pela primeira vez, estranhamente feliz.
– É esta maravilhosa natureza, que, com suas cores, seus aromas e seus sons, nos cativa e mexe com os nossos sentimentos. – Essas palavras, graves e solenes, levaram-na a sentir, como ele, a beleza e o encanto de tudo que os cercava. Seu coração batia rapidamente, perturbando seus nervos. Aproximou-se do marido e ficou ali na rocha iluminada pelo sol, admirando o tranqüilo mar sob um céu de safira, enquanto sua mente interpretava as palavras dele. O esplendor das cores, a suavidade do aroma da montanha e a harmonia das ondas acariciando os rochedos.
Virou-se para Doneus e este ainda olhava o mar. No que estaria pensando enquanto olhava lá para baixo? No perigo...? Experimentou imaginar o que seria da vida dela se ele um dia sofresse um acidente. Nunca mais iria embora, e ela....? Mas ele lhe prometera cinco meses de liberdade e não poderia quebrar sua promessa. Mas e Doneus? Como se arranjaria? Quem cuidaria dele e o ajudaria como àquele rapaz em Kalymnos?
– É tão selvagem e tão imponente que se perde totalmente a noção do tempo; aqui não há pressa. – Virando-se para ela enquanto falava, assustou-se com a expressão de seu rosto. – Alguma coisa errada? – perguntou ansioso.
Sacudiu a cabeça negativamente enquanto se afastava dele, lembrando-se de que este uma vez lhe dissera que seus olhos eram reveladores. Doneus nunca deveria saber de seus temores.
– Não, nada errado. – Deu uma breve risada que ele estranhou, não parecendo convencido, mas sugeriu que voltassem.

Num rápido exame de seus sentimentos, Julie teve que admitir que verdadeiramente gostara do passeio, por causa da companhia do marido. Num exame mais profundo, decidiu que o que sentia por Doneus era uma forte e constante piedade; pena de sua solidão e de sua pobreza que o obrigava a ter tão perigosa ocupação. Mas ele nunca deveria suspeitar desses sentimentos. Consciente de seus sentimentos, resolveu agir de modo diferente. Não mais seria orgulhosa, não se recusaria a comer com ele, nem discordaria dele. Inferior a ela, ele podia ser; mas era um cavalheiro, tendo mantido sua palavra, não a molestando. Até então, para seu próprio conforto, lavara sua roupa de cama, mas não a dele. Recusara-se a cozinhar ou limpar, na realidade, nada fizera além de ler, passear ou tomar banho de mar. Deixara o tempo passar, só ansiando pelo glorioso momento de voar para casa, para o ambiente de luxo e riqueza a que estava acostumada desde que nascera. Agora que estava decidida a tomar a vida dele mais fácil, esforçou-se para fazer coisas que sempre foram feitas pelos criados. Limpou a pequena sala, apesar de achar que não melhorara muito, pois o que poderia fazer com um chão pobre e paredes descascadas? Foi ao quarto de Doneus, trocou a cama e depois lavou os lençóis sujos.
Varreu o assoalho e tirou o pó dos móveis, enquanto Jason, que por alguma razão resolvera voltar para casa sozinho, abanava o rabo cada vez que Julie olhava para ele.
– Não me admira que você olhe espantado. É que resolvi ser amável com o seu dono. – Tendo terminado o quarto de Doneus, saiu, seguida pelo cachorro. – Se ao menos você pudesse falar, Jason, me contaria coisas sobre seu dono. Talvez você pudesse me dizer por que se casou comigo; pois não aceito a idéia de que foi por vingança. – Bateu palmas e Jason latiu para ela. – Que tal sou para ele? Bem, como você não pode responder, o mistério continua. Venha, ela, Jason, vamos encontrá-lo.
Doneus já vinha chegando em sua bicicleta e ao ver Jason gracejou:
– Parece que tenho que dividi-lo com você... – Saltou da bicicleta e encostou-a na parede do alpendre.
– Por que ele veio para casa mais cedo? Geralmente só vem com você.
– Deve ter tido saudade de você. – Doneus estivera no castelo o dia todo e parecia bastante cansado. Um cansaço mais mental do que físico.
Vendo os olhos do marido se arregalarem quando entrou na salinha, achou que todo seu trabalho não tinha sido em vão. Ela não via diferença, mas, pelo jeito, ele sim.
– O que aconteceu por aqui? – Deu um pequeno assobio e acrescentou: – Não sinto cheiro de comida aqui há muitos anos.
– Fiz um jantar – disse imediatamente, esperando que ele não assumisse ares de quem era responsável pela mudança. Mas ele era muito esperto e muito cauteloso; por isso disse simplesmente:
– Que bom, Julie; e o que você fez!
– Algo muito simples. Vi a carroça do açougueiro quando estava passeando e comprei um pouco de carne. Não tenho idéia do que seja, pois nunca me preocupei com cozinha. Provavelmente é um bife.
– Provavelmente é cabra – disse rindo.
– Ah! Não! Vocês comem cabras? – Estava irritando-a e, apesar de se sentir indignada, só conseguia ficar ali pensando como ele era atraente.
– Bem – disse – está feita, mas não estou certa de ter preparado da maneira correta.
Rindo, foi até o alpendre para lavar as mãos antes de se sentar à mesa. Julie tentara arranjá-la da maneira mais atraente possível, mas os talheres eram velhos e os pratos rachados com seus desenhos originais apagados. Entretanto, pusera flores na mesa, magnólias e gerânios do jardim. Serviu a carne na bandeja que conhecera por ocasião de sua primeira visita. Observava seu rosto enquanto ele experimentava a carne e as verduras. Sua expressão era uma máscara, mas, ao ver o olhar ansioso dela, sorriu e balançou a cabeça aprovativamente.
– Muito saboroso – comentou, servindo-se de mais um pouco.
Doneus parecia menos fatigado e ela decidiu não poupar esforços para torná-lo feliz. Esses esforços significavam dedicar-lhe todo seu tempo; quando ele estava em casa, evidentemente, e também, depois do jantar, quando saíam juntos para passear sob um céu cintilante de estrelas e ir até o fim da ilha, ao lugar que eles tanto amavam. Enquanto andavam, o rápido crepúsculo mergulhava-os no encanto e suavidade de uma noite grega. A lua aparecia gloriosa, prateando as escarpas adormecidas enquanto o mar se tomava salpicado do brilho das estrelas. Tudo era calma e tranqüilidade e, freqüentemente, os dois paravam silenciosos ficando somente a olhar a imensidão. Gradualmente, enquanto as semanas passavam, Julie se deixava envolver pelo encanto daquela ilha paradisíaca e sua casa na Inglaterra parecia um mundo distante... pelo menos, muito longe para alcançar.

– Doneus, se ao menos você me deixasse gastar algum dinheiro aqui...
– Julie, não comece novamente, por favor – disse num delicado tom de censura, que provocou uma leve ruga em sua face. Ultimamente, por uma ou duas vezes ele se dirigira a ela nesse tom, o que demonstrava que estava mais confiante. Tomara-se mais positivo, embora sempre gentil. Nunca lhe dirigira uma palavra mais rude ou um olhar mais zangado.
– Para que serve o dinheiro senão para proporcionar conforto? – recomeçava ela. Há uma semana fora ver um engenheiro em Pothaia, capital da ilha, e este a seu pedido fizera um orçamento. Nós poderíamos ter uma nova e moderna sala, mobiliada a seu gosto. – Estavam sentados no terraço, à luz do crepúsculo, tomando o café, depois do jantar. Doneus olhava para sua esposa, procurando algum sinal de descontentamento. Mas seus lindos olhos estavam claros e suaves e seus lábios sorrindo ligeiramente. Desviou o olhar, como quem luta consigo mesmo, e Julie, seguindo-lhe a: direção, viu a silhueta do castelo, onde inúmeras luzes brilhavam de várias janelas. Os americanos conservavam uma grande criadagem, Doneus lhe dissera uma vez, referindo-se às luzes. Julie voltou a procurar o marido.
– Doneus... – murmurou, e ele virou a cabeça.
– Sim, Julie?
– Se você está pensando que eu estou reclamando o luxo e o conforto de minha casa na Inglaterra, está enganado. Estou resignada a morar aqui, mas gostaria de ter uma casa em ordem. Não seria bom se tivéssemos um banheiro?
– Então você não está reclamando luxo? – Seus negros olhos procuraram os dela, pesquisando novamente. Continuava num estado de indecisão e sua expressão era desconcertante.
– No que está pensando, Doneus?
Ele lhe sorriu como que divertido.
– Imagino como você reagiria se soubesse. Se eu ao menos ousasse contar-lhe... – As últimas palavras foram ditas muito baixo, mas Julie pôde ouvi-las e ficou intrigada.
– Gostaria de poder entender você.
– Algum dia, minha querida, você poderá.
– Você sempre me responde com evasivas como esta. – Havia uma leve petulância em seu olhar e uma certa contrariedade em seus lábios. Não ocorria a Julie que sua atitude e mesmo toda a situação era o que normalmente acontecia entre um casal comum. – Por que às vezes você é tão incomunicável e tão crítico?
– Eu sou um enigma, não, Julie?
– Você sabe que é. Tão diferente do que eu esperava... Do que eu esperava quando vim aqui pela primeira vez...
Seu olhar tomou-se frio e Julie não gostou do que viu.
– Seu tio lhe deu a entender que teria que negociar com um pobre aldeão grego. – Meio afirmando e meio perguntando, Julie achou melhor esperar que ele continuasse. – Alguém que você pudesse intimidar.
– Intimidar, não – cortou indignada. – Nunca tive a intenção de intimidá-lo. Pretendia somente um acordo amigável.
– Você, sim. Disso era o que teria gostado. Mas não seu tio. Ele desde o começo me considerou um aldeão rude e sem educação, um homem que deveria se atirar de joelhos a seus pés, grato por receber quinhentas libras inglesas. – Julie permanecia silenciosa, imaginando o que diria Doneus se soubesse que Edwin achara que duzentas libras seriam mais que suficientes para fazê-lo feliz. – O que seu tio não sabia era que eu, ao contrário dele, não ligo para dinheiro, que, não nego, proporciona luxo e meios de desfrutá-lo. O dinheiro é superficial, Julie, e não fundamental. Tenho sido feliz aqui nesta casinha, tanto quanto poderia ser no castelo de Santa Elena ali adiante.
Julie ficou olhando-o, convencida de que as palavras dele deviam ter um significado bem mais profundo do que ela estava entendendo; contudo, deixou de pensar no assunto para novamente insistir em gastar algum dinheiro com reformas. Firmemente, ele negou dizendo:
– Minha casa tem que ser suficiente para você, Julie.
Lágrimas de frustração vieram-lhe aos olhos.
– Por que tem que ser tão teimoso?
– Não sou teimoso, sou orgulhoso. Não quero minha esposa pagando uma casa para mim.
– Não estaria pagando uma casa, mas sim contribuindo para nossa casa! – Depois, num rompante, arrematou. – Se eu fosse uma moça grega, você aceitaria o meu dote.
Doneus parecia espantado e magoado por suas duras palavras quando perguntou: – O que a faz pensar assim?
– Todo marido grego recebe o dote da esposa quando se casa.
– Nem todos. Talvez lhe interesse saber que eu particularmente desaprovo esse costume e ficarei feliz quando o abandonarem.
– Você se casaria sem um dote? – impensadamente, ela se referia ao passado e ficou preocupada, pois não tivera a intenção de evocar memórias ou de aborrecê-lo. Mas ele estava calmo, quando respondeu:
– A moça de quem fui noivo me traria um dote, sim, porque, obedecendo às ordens de nossos pais, concordamos com um casamento arranjado e o costume deveria ser seguido. Isto é, meus pais nem por um momento teriam aceito Annoula se os pais dela não lhe tivessem arranjado um dote. – Falava indiferentemente e ela se lembrava de o tio lhe ter dito que ele ficara desesperado com a morte da noiva. Agora, porém, sabia que essa reação era só angústia por ver uma vida tão jovem terminar e não havia amor entre ele e Annoula. Como poderia um casamento arranjado ser baseado em amor?
– Não posso imaginar alguém como você recebendo ordens. – Corou intensamente, envergonhada pela sua falta de tato.
– Eu era um garoto naquela ocasião. Também você deve se lembrar de que, em meu país, a obediência é ensinada às crianças desde o nascimento. Somente quando adultos é que lhes ocorre a idéia de discordar – sorriu francamente, seus olhos negros nos dela. – Agora, ninguém ousaria me dar ordens, naturalmente.
Convencida de que suas palavras tinham um significado mais profundo, Julie meditou por alguns minutos. Falara como se ocupasse uma espécie de posição superior; no entanto, se ele era somente um apanhador de esponjas, certamente receberia ordens de seu chefe no navio. Recostou-se na cadeira, sentindo chegar até ela o aroma do pomar que ficava mais além. Algumas árvores ainda floriam. Bananas, romãs, laranjas e limões. Terminando o pomar, uma fila de frondosas alfarrobeiras, com seus negros frutos reluzentes, pela encosta majestosos ciprestes e, de vez em quando, uma palmeira que balançava suas folhas tocadas pela suave brisa do mar.
– Com referência à casa, Doneus – disse quebrando o profundo silêncio – não poderia eu gastar só um pouquinho do meu dinheiro? – Sua voz era meiga e gentil, mas só trouxe um franzir de testa do marido.
– Julie, eu disse que o assunto estava encerrado. Disse que não, e é não!
Julie cerrou os lábios. Ser dominada por um simples aldeão, ela, a altiva e poderosa Julie Veltrovers... não era possível. No entanto, não tinha alternativa senão aceitar a autoridade do marido, mesmo que, no momento, nada lhe poderia dar maior prazer do que contrariá-lo.
Ela observava suas reações com interesse, mas Julie resolveu que de nada adiantaria voltar ao assunto. Por isso, ergueu para ele os olhos ainda marejados e pensou que se queria tomar a casa mais confortável, era mais por ele do que por ela própria. Desejava que, ao chegar em casa, tivesse numa fresca e arejada sala sua boa cadeira na qual pudesse relaxar, com bonitas coisas ao redor e um tapete sob os pés.
– Espero que você aceite minha vontade sem animosidade. – Sua voz profunda revelava austeridade e paradoxalmente um pouco de ansiedade. Significaria tanto assim para ele que não vivessem em harmonia?
– Não sinto animosidade por você, Doneus.
Sentada ali com Doneus tão perto, compreendeu que realmente era mais lógico ter recebido a negativa do marido do que sua aprovação. Se ele tivesse concordado, e se submetido a seus desejos, seria uma fraqueza da parte dele e isso lhe traria mais desapontamento do que satisfação. Nesse momento, não se perguntou por que se sentia assim, nem examinou o porquê de seus sentimentos com relação ao marido. Se o tivesse feito, a resposta seria que sentia pena dele e estava satisfeita com à total aceitação de suas determinações.


Capítulo VI


Gradualmente Julie foi conhecendo os moradores do vilarejo próximo, e até lhes dirigia um sorridente kalimera ou yassoo, dependendo da hora do dia em que os encontrasse. A princípio era olhada com estranheza, às vezes até com um ligeiro ar de caçoada. Era como se todos soubessem algo de sua peculiar situação. Somente quando a conheceram melhor foi que passaram a lhe sorrir francamente. Agora, era comum quando Julie passava por alguma mulher, que vestida de preto cuidava de seu jardim, que esta a convidasse para entrar e tomar um café ou um copo do delicioso sorvete feito com suco de romã. Quando provou esse sorvete pela primeira vez, lembrou-se com ironia de que tinha sido por tomar um suco de romã que Perséfone fora forçada a passar quatro meses do ano com Aïdoneus em seu mundo escuro. Mas Julie, há algum tempo, vinha modificando sua maneira de ser e de sentir. Amava aquela ilha e seu povo, às vezes se sentindo como parte integrante deles. Sua adaptação a divertia. Por vezes chegava a pensar que alguma força estranha a tinha influenciado. Força essa que nada tinha a ver com sua preocupação, com a fortuna da família ou a preservação da felicidade de Lavínia.
Não podia negar o impacto que Doneus lhe causara no primeiro encontro. Sentia que algo havia entrado em seu coração e ali permanecia adormecido sem poder ser decifrado. Dessa incompreensão foi gradualmente emergindo, reconhecendo o que a tinha feito se decidir a casar com Doneus, que a condenava a sete meses de pobreza por ano. Sua personalidade, sua extrema gentileza e seu respeito eram qualidades que encontrara nele. No íntimo de sua natureza meiga, brotara a grande piedade que sentia por ele. Piedade...? Julie freqüentemente se indagava se seria esse o sentimento que abrigaria na próxima Páscoa, quando ele sairia para o mar, se arriscando a tão sérios perigos. A princípio, vivia pensando no dia em que poderia deixar a ilha por cinco meses... mas agora, com aquele incerto sentimento no coração, começava a imaginar se se sentiria feliz sabendo que sua felicidade significava perigo para o marido.
– Kalimera, madame Doneus! – Julie estava caminhando pela ensolarada rua da vila, quando uma voz a chamou e ela se voltou, sorrindo.
– Kalimera, Astero. – Imediatamente um portão se abriu para que ela entrasse no jardim. – Como vai a senhora?
– Muito bem; minha filha teve um novo bebê. Não quer entrar para vê-lo?
– Já teve? Pensei que era para o mês que vem...
– Nasceu esta noite, um menino!
Julie sorriu e entrou na casa. Um menino! Nada de dores de cabeça para o pai, nem preocupação com dote.
Kyria já estava sentada numa cadeira, toda feliz, amamentando seu bebê. Seus olhos brilhavam e seus lindos dentes brancos apareciam num largo sorriso.
– Senhora Doneus... que bom que a senhora veio ver Yannis. Ele tem dezesseis horas de vida!
Julie aproximou-se e gentilmente tocou seu rostinho. Era gordinho, cabeludo e muito forte.
– É lindo, Kyria. Você deve estar muito orgulhosa.
– Estou sim, por ele ser um menino – disse sorrindo.
Era o primeiro bebê dela. Um outro seria esperado no ano seguinte e assim por diante.
– Quer um sorvete? – Astero já trazia o copo. – Tomaremos saudando meu neto...
– Naturalmente que sim, Astero. – Tomaram enquanto Kyria continuava alimentando o filho. Depois ofereceu-o a Julie.
– Quer segurá-lo um pouco?
Tomando a trouxinha dos braços da orgulhosa mãe, Julie segurou-a, olhando a criança adormecida, enquanto uma singular sensação brotava em seu íntimo. Sempre desejara ter filhos e num relance imaginou-os dois meninos e talvez duas meninas, crescendo na fartura, com uma ama desde o início. Depois a escola, uma boa escola, e então uma carreira. Julie cerrou os olhos Por um segundo, como que querendo espantar a dor de sua frustração.
Durante o jantar, contou a Doneus sobre o bebê de Kyria.
– É um lindo garoto – acrescentou, e Doneus rapidamente olhou para ela, seu olhar no dela por um longo momento. Julie abaixou a cabeça lembrando-se de que seus olhos eram reveladores. Doneus não fez comentários e mudou de assunto, dizendo-lhe que tinham sido convidados para jantar fora na noite seguinte.
– Jantar? Mas onde?
– Com alguns amigos meus. Eles moram naquela casa rosa e branca que se pode ver daqui. – Mostrou uma linda casa construída num terraço cavado na montanha. Era tão distante que parecia uma casa de boneca. Julie pestanejou. Tinha estado perto da casa, num do seus passeios, e lhe parecera uma casa rica e confortável.
– São seus amigos? – A surpresa de sua voz trouxe um olhar duro de Doneus para ela.
– E por que não? Posso saber?
– Desculpe, Doneus. Acho que me surpreendi pelo fato de você nunca os haver mencionado antes.
Doneus cortou um pedaço de pão e colocou-o no prato.
– Sua surpresa vem do fato de você não acreditar que eu possa ter amigos de tal posição.
Completamente desconcertada pela sua rápida percepção, disse disfarçando:
– São gregos?
– Michalis é, mas sua esposa é inglesa.
– Inglesa? Que bom! Pensar que ela mora aqui perto e que eu nunca a encontrei. Como se chama? – A excitação trouxera cores lindas ao rosto de Julie e qualquer ressentimento dele se desfez quando sorriu para a esposa.
– Tracy. Ela e Michalis se encontraram numa festa no castelo. Tracy estava aqui de férias. Você não a encontrou antes, porque ela e Michalis estavam viajando pelo continente nestas últimas semanas.
– Ela estava de férias e foi convidada para a festa?
– O dono conhece os pais dela. – Doneus olhou para Jason, que estava deitado sob a mesa. – Encontrei Michalis hoje e ele nos convidou para amanhã à noite.
O coração de Julie batia apressadamente. Um aldeão ter amizade com gente como aquela? Gostaria de fazer uma dúzia de perguntas, mas sabia que as respostas seriam evasivas. Quis saber se seus amigos estavam a par das singulares circunstâncias de seu casamento. A hesitação dele ao falar mostrava claramente que escolhia as palavras.
– Sabem parte da história.
– Parte dela?
– Obviamente não a contei toda. – Doneus começou a comer, enquanto Julie ponderava. Essa atitude dele contribuía para o mistério que os cercava, e, mesmo sabendo que ele não estava disposto a responder mais nada, não resistiu e perguntou:
– O quanto você lhes contou, Doneus?
Do outro lado da mesa, ele lhe lançou um olhar impaciente.
– Não lhe interessa, Julie. – E recomeçou a comer.
– Por que você tem que ser tão irritantemente incomunicável?
– Curiosidade feminina, hein?
– Naturalmente sou curiosa, principalmente quando minha vida está envolvida.
Os olhos dele brilharam e ela reconheceu neles um pouco de compreensão.
– Não consigo entender... – Seus lábios se apertaram novamente. – Esse mistério....
– Mistério?
– Fico completamente transtornada quando não consigo resolver um mistério. Quanto mais o conheço, mais fico convencida de que você é incapaz de guardar um rancor por tantos anos.
– Posso tomar isso como um elogio? – perguntou rindo.
– Seria totalmente contra seu caráter guardar esse rancor. Alguma coisa me diz que é até impossível.
– Estou ficando lisonjeado – disse divertido. – Você é encantadora quando fica zangada. Seus olhos se tornam ainda mais expressivos.
Exasperada, Julie tomou o garfo e a faca nas mãos, enquanto um pesado silêncio caía entre eles. Quando falou, sua voz era meiga e gentilmente persuasiva.
– Por que você me conserva nessa ignorância?
– Um dia, minha querida, você saberá de tudo – disse pausadamente – mas até lá...
Julie interrompeu-o, cortando suas palavras.
– Então admite que há um mistério?
– Admito que você não sabe de muita coisa, Julie. – Sua face se iluminou. – Como eu disse, um dia você saberá de tudo e esse “um dia” pode ser muito breve.
– Por que não agora?
– Porque ainda não é hora. E agora, se não se importa, mudemos de assunto. – A inflexibilidade de sua voz e dureza de suas feições convenceram-na de que era inútil persistir. Adotou então um ar de fria altivez e o resto da refeição decorreu em silêncio. Mais tarde, porém, quando como de costume estavam tomando o café no terraço, perguntou-lhe que roupa deveria usar para ir ao jantar do dia seguinte. Assim que formulou a pergunta, lembrou-se de que Doneus nada tinha de realmente decente para usar. Somente o terno barato que usara no dia em que fora à catedral e era tudo.
– Nada de especial, Julie. Ponha aquele seu vestido de algodão; aquele florido, que é lindo.
Sorriu satisfeita ao ver que ele reparava no que ela usava. Pensou nisso novamente quando estavam observando o luar, o céu salpicado de estrelas e o indistinto perfil da ilha de Leros. Haviam caminhado até o fim da ilha como de costume. Uma suave brisa brincava com seus cabelos e a maresia chegava às suas narinas. Fora um passeio silencioso, ambos entregues a seus próprios pensamentos. Agora que estavam ali, Julie sentiu nascer dentro de si um onda de ternura que a envolvia e tomava conta de todo seu ser. O iate branco podia ser visto a uma grande distância, flutuando no negro mar. Isso lhe deu uma desculpa para quebrar o silêncio que se tornava insuportável.
– Os americanos vão longe no iate deles?
– Até as ilhas vizinhas. – Doneus virou a: cabeça, seguindo a direção do olhar dela.
– Você foi alguma vez com eles? – Não imaginava que sim, mas tinha que continuar falando.
– Sim, estive em muitas ilhas no iate deles – respondeu, surpreendendo-a.
– Devem gostar muito de você. – Não houve resposta e ela continuou procurando o que dizer. – Você os ajuda a navegar?
– Eu navego, sim. – Aproximou-se para fitá-la. – Por que esse súbito interesse?
– E... é somente para conversar sobre alguma coisa. – Sua voz era incerta e ele veio para bem junto dela. Antes que ela adivinhasse suas intenções, ele tomou seu rosto entre as mãos e olhou-a bem dentro dos olhos curiosamente.
– Contra o que você está lutando, Julie? – perguntou inesperadamente. – Diga-me!
Permaneceu imóvel, profundamente ciente do seu contato, como estivera em ocasiões anteriores.
– Eu... não sei o que quer dizer...
– Acho que sabe. Examine seus sentimentos, Julie, e me diga contra o que está lutando.
Estremecia a seu toque, vibrando com ele... entretanto temendo o que esse lhe provocava.
– Sua pergunta é tão estranha! – O resto perdeu-se em seu beijo; ela resistiu por um momento, mas rendeu-se ao poder que ele exercia sobre ela, poder esse que, desde o começo, tentara negar.
Seus lábios eram quentes e apaixonados, gentis mas potentes e sutilmente persuasivos. Tornou-se parte dele, incapaz de sair daquele envolvimento ou esboçar uma fraca resistência ao que rapidamente tomava conta dela... seu másculo corpo tão próximo ao dela não deixava dúvidas quanto a seu ardor.
– Doneus! Por favor... – Mas o protesto morreu quando seus lábios encontraram os dela e novamente se uniram num beijo. O sangue agitava-se em suas veias em ondas de paixão e ansiedade... em completo desespero começou a soluçar. Mas seus braços eram como fitas de aço que a retinham junto dele.
– Minha querida kore, minha Julie... – Por fim soltou-a e suas palavras vieram suaves e acariciantes: – Não lute mais, Julie. Eu vi em seus olhos há semanas... – Seus lábios se abriram num largo sorriso e ela estremeceu ante o magnetismo e encanto dele. – Lembra-se do que lhe disse sobre vir a mim de livre e espontânea vontade? – Parou, dando-lhe a oportunidade de replicar, mas ela não podia falar. Isso era loucura, fruto da magia da noite. – Você quer me amar? Casemo-nos esta noite?
Somente então recobrou seu controle. Não poderia ser! Amar um aldeão? Impossível!
– Não! Como ousa sugerir isso? Você me deu a sua palavra de que o nosso casamento seria impessoal e não pode voltar atrás.
Tentou afastar-se mas as mãos dele retiveram as suas. Não parecia ter desistido e Julie ainda tinha medo...
– Não quebrarei minha palavra – afirmou calma e gentilmente. – Somente lhe pedi que viesse a mim por sua vontade...
– Não! Eu disse que não! Por favor, Doneus, não me provoque novamente.
Levando as mãos dela aos lábios, beijou uma depois outra.
– Venha vamos para casa. Jason, ela...
O cão levantou-se, latindo para ele e correu na frente. Doneus conservava na sua a mão dela, que queria desesperadamente puxá-la, mas que algo mais forte do que a força dele impedia. Sem falar, começaram a andar. Doneus de cabeça erguida, que magnífica figura! E ela tentando se recompor e dissipar a excitação de um momento de quase rendição. Mas falhou e quando se aproximou de casa seu temor cresceu. Que fraqueza! Era deplorável! Estava determinada a ser forte.
Doneus acendeu a luz assim que entraram e ele pôde ver a encantadora sombra da figura de Julie.
– Boa noite – disse com voz que demonstrava nervosismo. – Estou... estou cansada – Viu um estranho sorriso nos lábios do marido e repentinamente se viu em seus braços. Ele não a beijou, mas ficou olhando seu rosto e sacudindo a cabeça num sinal de impaciência.
– Você confia que eu mantenha minha promessa? – perguntou com uma ponta de ironia.
– Sim, Doneus, confio.
– Nesse caso deve ser de você mesma que tem medo. – Julie tremeu em seus braços.
– Não tenho medo de mim. Por que pensa assim?
Deu uma risadinha e acrescentou:
– Boa noite, minha querida e... durma bem...
– Boa noite, Doneus – respondeu,. separando-se dele. Permaneceu um longo tempo encostada à porta fechada. Poderiam as coisas voltar a ser como antes depois desta noite? Durma bem... Uma hora depois, essas palavras voltaram a sua mente em tumulto. Por fim levantou-se e acendeu uma vela. Decidiu fazer uma xícara de chá, mas, ao sair do quarto, a porta dele se abriu. Ainda estava vestido e seus negros cabelos penteados. Nem se deitara ainda!
– O que é, Julie?
– Eu... eu... quero tomar uma xícara de chá.
Seus olhos caíram na delicada camisola. Por que não tinha vestido algo por cima?, pensou furiosa. Uma clara risada ecoou, enquanto ele tomava o castiçal de suas mãos trêmulas e a olhava profundamente. Ela sabia que seus olhos tudo revelavam, mas não se importou com isso. Outra risada quebrou o silêncio, divertida mas triunfante. Doneus apagou a vela e, segurando a sua mão, gentilmente levou-a de volta a seu quarto.

Ao abrir os olhos, viu-o dormindo serenamente a seu lado. Respiração tranqüila e feições repousadas. Seus lábios se moviam de vez em quando quase imperceptivelmente como se falasse em seu sono. Julie sentiu uma vontade irreprimível de pousar seus lábios nos dele, mas paradoxalmente sentia desgosto por sua fraqueza da noite passada. A que baixeza descera. Ela, Julie Veltrovers, ter consentido que um aldeão grego a provocasse daquela maneira? Não aconteceria outra vez, decidiu, escorregando da cama e pegando suas roupas.
Se ao menos não tivesse sentido piedade por ele... Sabia agora que o que chamava de piedade era amor... Isso era o que ele perguntara, contra o que ela lutava.
Foi até o alpendre, onde se lavou antes de se vestir. Automaticamente abriu a porta para Jason sair e começou a fazer o café. Poderiam agora voltar ao que eram antes? Doneus se conformaria com as relações formais? Teria que se conformar, pois senão o ameaçaria de abandono. Seu orgulho não permitia que ela fosse sua escrava pois estava certa de que era assim que ele a via. Nem agora permitia que a palavra amor viesse a seus lábios. A revolta consigo mesma crescia, e quando finalmente seu marido apareceu ela o tratou friamente, voltando ao alpendre e lá ficando um bom tempo, antes de lhe trazer o café.
– E você não vai tomar o seu? – Havia um quê de caçoada em seu olhar e Julie corou intensamente.
– Já tomei.
– Estou atrasado, eu sei. Deveria ter me acordado – disse olhando o prato que ela colocara a sua frente.
– Prefiro tomar meu café sozinha. – Olhou para o relógio. – Você não vai trabalhar hoje?
Pelos seus olhos negros passou um lampejo de raiva.
– Vou quando tiver vontade... – Serviu-se de mais uma torrada. – O que há com você?
Virou-se para ele, os olhos brilhando. – Você sabe muito bem o que há comigo.
– Você veio a mim voluntariamente – lembrou-lhe ele.
– Porque você me provocou – começou ela quando ele a interrompeu dizendo impassivelmente:
– Não é exclusividade do homem provocar e não ficaria admirado se você me provocasse.
Encarou-o furiosa.
– Isso não foi de um cavalheiro!
Riu sarcasticamente e perguntou: – Alguma vez você me olhou como um cavalheiro?
Julie ficou vermelha enquanto abaixava a cabeça. Por que não podia conservar sua zanga e ressentimento?
– Eu acreditei que você era um cavalheiro.
– Não, Julie, nunca você me considerou assim. Para você, com suas idéias de superioridade, não passo de um aldeão. Negue se for capaz. – Julie molhou os lábios, culpada e arrependida. Desejava que ele nunca tivesse pensado assim. – Não tem nada a dizer? – perguntou ele. Uma ligeira curva de sua boca denotava um profundo desapontamento. – Voltamos ao ponto em que estávamos – disse acremente, mas acrescentou num tom mais suave: – Não exatamente, é claro, pois agora estamos realmente casados.
– Não! Foi um erro... a... a noite passada e sua persistência... – As cores lhe fugindo do rosto e baixando os olhos num gesto de censura.
– Admito que fui persistente, mas você me queria tanto quanto eu a você e sua desonestidade me surpreende, pois sempre a julguei acima disso. E quanto a isso de ter sido um erro, espero que se lembre do que eu disse.
Seus olhos estavam perdidos ao longe e toda a sua arrogância desaparecida quando voltou a falar.
– Você não me forçará a isso; não nestas circunstâncias.
– As circunstâncias não são anormais. Sou seu marido. Eu a tentei e você correspondeu à tentação... mas somente porque não queria resistir a ela...
– Eu queria!
– E por que não resistiu? – Julie não respondeu e ele continuou: – O que lhe dá a certeza de que eu não a terei novamente? Você foi avisada, Julie, e me conhece o bastante para saber que eu sei o que digo.
– Não quero que nosso casamento seja normal, Doneus.
Ficou silencioso enquanto se servia de manteiga e depois de geléia.
– Nosso casamento é normal e vai permanecer assim.
– Eu posso abandonar você!
Ele a encarou com a faca na mão.
– Você pode, mas não o fará. Por favor, não me interrompa. Confio em você, Julie. Sei que posso confiar. Como eu, você nunca quebra a sua palavra. Eu lhe disse isto antes. Lembra-se? E agora, mudemos de assunto.
– Não, enquanto não tivermos resolvido nosso futuro relacionamento.
Doneus serviu-se de mais uma xícara de café.
– O que a faz pensar que possa resistir quando novamente eu a tentar?
– Terei o cuidado de não ficar em tão vulnerável situação novamente.
– Bem, minha querida, vamos esperar e ver... – E Doneus deu uma gostosa gargalhada.

– Chegarei um pouco tarde esta noite – disse Doneus vestindo seu casaco e preparando-se para ir trabalhar. – Não me espere antes das sete horas.
– A que horas devemos chegar lá? – perguntou imaginando o que Doneus poderia ficar fazendo todo esse tempo. Presumia que o trabalho dele no castelo fosse no jardim e já seria escuro às sete horas.
– O jantar é às oito e meia, mas devemos chegar às oito.
– Mas é uma longa caminhada até lá – começou quando ele a interrompeu:
– Emprestarei um carro.
Olhou-o admirada.
– Enquanto eles estão fora? Não se incomodam com isso?
Doneus assobiou para Jason, que estava fazendo um buraco, e este veio correndo para ele.
– Comporte-se! Já vamos indo! – E virou-se para Julie sem muita expressão. – Não, eles não se importam.
Ficou pela janela da sala vendo-o montar na bicicleta e seguiu-o até perdê-lo de vista numa curva do caminho, sempre com Jason trotando a seu lado. Que estranho... Como podia um empregado fazer exatamente o que queria? Sabendo que ele tomava conta do carro, não se surpreenderia se os donos não se importassem de lhe emprestar, pois ele não iria longe: não tinha dinheiro para a gasolina...
Julie começou a se aprontar muito antes do necessário, pois estava excitada com a idéia do jantar. Estava ansiosa para conhecer Tracy e o marido, interessada em saber como eram e que atitude teriam para com seu marido. Para gente como eles, Doneus deveria parecer inferior e já era de estranhar que fossem seus amigos.
Estava pronta quando Doneus chegou logo depois de sete horas. Parou um momento, profundamente admirado. O carro, diferente daquele que a havia levado ao cais, era grande e brilhante, um carro digno de um dono de castelo. O entusiasmo de Julie cresceu quando o viu. Luxo novamente ainda que por uma curta noite.
– Sinto-me como Cinderela! – disse instintivamente, procurando a face do marido ansiosamente, ciente de seu erro.
– Obrigada, Julie – retrucou rispidamente. – Sinto não poder lhe dar um carro como este e talvez nunca seja capaz de fazê-lo. – Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, deixou-a, indo para o alpendre para se lavar e fazer a barba.
Julie caiu em si imediatamente. Durante o dia seus pensamentos tinham inevitavelmente se voltado para a conversa da manhã e estivera preocupada em arranjar argumentos para mais tarde nessa noite, mas com o passar do tempo, se vestindo, pôs suas preocupações de lado e pensou somente no jantar e nas pessoas que ia conhecer. Agora estragara tudo. Notando a expressão dela, Doneus perguntou:
– O que há de errado? Não está feliz com a idéia de jantar fora? – Assentiu com a cabeça, mas seu ar era de infelicidade; Doneus levantou-lhe a cabeça, pondo-lhe a mão sob o queixo.
– Parece que eu sempre digo as coisas erradas. – Seus olhos estavam tristes, quando ele se abaixou, beijando-lhe a boca.
– Talvez seja eu quem reaja erradamente. Esqueça, Julie. – Seus lábios acharam novamente os dela, antes que ele a largasse. – Você está encantadora, minha querida, e eu estarei orgulhoso de você.
Meia hora depois estavam no carro, rodando sob as árvores, sentindo a fragrância das flores dos jardins das vilas por onde passavam. Agora, Julie olhava o homem ao volante. Tão confiante ele estava, usando seu temo pobre e barato. Observava seu perfil, notando as másculas linhas do seu rosto. O percurso era agradável. As janelas estavam abertas, permitindo que o aroma da montanha chegasse até ela, que sempre o associava ao extremo norte da ilha.
Depois de dez minutos, Doneus entrou por uma alameda ladeada de altos ciprestes e parou defronte à casa.
Uma criada abriu a porta e pegou o agasalho de Julie antes de conduzi-los à sala, onde Tracy e Michalis os aguardavam.


Capítulo VII

A sala era linda. Grande e arejada, com largos e brancos arcos ladeando a lareira de pedra, tudo dando a impressão de luxo, riqueza e muito bom gosto. As cortinas e tapetes eram de um suave cinza prateado e os estofados forrados de rosa-coral. Contra uma parede, um barzinho e na outra uma escrivaninha antiga. Um vitral colorido refletia a luz da lareira que enchia a sala com o aroma dos nós de pinho queimando.
O casal levantou-se e as apresentações foram feitas por Doneus, enquanto Julie, desconfiada, prestava atenção aos sorrisos de Tracy e Michalis. Lembrava-se de quando pelas primeiras vezes encontrava os moradores da vila e que estes sorriam meio divertidos como se soubessem da sua situação peculiar. Enquanto ouvia Michalis congratular Doneus pela beleza de sua esposa, soube instintivamente que, se descobrisse a causa dos sorrisos, todo o mistério que cercava seu casamento seria esclarecido.
Olhou para Doneus estudando sua reação. Nunca vira expressão mais orgulhosa no rosto de um homem. Não era o orgulho de ter se casado com um membro da aristocracia inglesa, nem o orgulho da vitória o que refletia a máscula face de Doneus, mas sim o sincero prazer de ver seus amigos gostarem de sua mulher e a elogiarem.
– Ficamos surpresos ao saber que Doneus estava casado – Tracy dizia, enquanto Michalis preparava as bebidas. – Quando saímos de férias era um solteirão inveterado e na nossa volta o encontramos casado.
Julie sorriu e um encantador rubor coloriu suas faces.
Viu Michalis, quando este lhe estendia um copo, e teve a impressão de que os olhos dele brilhavam divertidos e que ele reprimia o riso.
– Foi um tanto repentino – admitiu Doneus, deixando-se cair numa poltrona e procurando o olhar curioso de Julie –, mas eu a conheci há muitos anos.
Julie observou Tracy. Devia ter uns vinte e cinco anos de idade, olhos castanhos, límpidos e francos. Estava muito bem vestida e usava um enorme solitário por cima da aliança, no terceiro dedo da mão direita, segundo o costume grego. Nem ela nem o marido demonstraram surpresa com a situação, e, com toda a sinceridade, Julie não podia negar o ar distinto e confiante de ambos. Que ela não era uma moça de classe média, devia ser evidente; no entanto, eles nada acharam de extraordinário no fato de Doneus ter se casado com ela. Obviamente, ele deveria tê-los preparado antes do encontro. Quanto e o que lhes teria contado?
O jantar foi servido pela mesma criada que os recebera, Eleni, que ara casada com o jardineiro deles. O casal morava com a mãe de Eleni, numa linda casinha escondida da casa grande por um bosque de espirradeiras que exibiam suas flores rosas e brancas..
– Ela já tem um filho e está esperando outro. A diferença entre eles não chegará a um ano! Esse é o problema aqui; as moças são muito férteis.
Julie olhou para Doneus; estava impassível, mas ela percebeu que ele lera seu pensamento, naquela fração de segundo. Ter um filho...
Talvez agora ela estivesse esperando um bebê. Desviou o olhar para disfarçar seus pensamentos. Certamente uma única vez, uma breve hora de fraqueza, não lhe podia trazer essa conseqüência. Nunca mais, prometera a si mesma, correria tais riscos.
Com a emoção de Eleni e seu filho, naturalmente o assunto recaiu sobre o futuro da ilha. Os rapazes estavam deixando a ilha às centenas, procurando um meio de vida mais fácil e menos arriscado. Muitos iam para a Austrália, que parecia ser a terra da promissão para u mocidade.
– Se esse êxodo continua, em breve Kalymnos estará desabitada. – A voz de Michalis traduzia sua tristeza. – O comércio de esponjas já está condenado com o aparecimento dos sintéticos, que, no parecer dos usuários, são mais baratos e melhores.
Julie reparou que Doneus estava perdido em pensamentos.
– Você tem razão, Michalis. Os jovens fogem dos riscos e não podemos culpá-los. I thálassa é um senhor cruel e o único culpado da deserção dos jovens – interrompeu-se ao ver a expressão confusa da esposa – I thálassa é o mar, minha querida.... o crudelíssimo mar...
Empalideceu sensivelmente, sentindo o coração trespassado por uma dor aguda. Levantou a cabeça, ciente de que todos haviam percebido seu sofrimento.
Tracy, parecendo querer ajudá-la, disse numa voz que não demonstrava muita convicção:
– Centenas vão embora e desses muito poucos são aleijados.
– Todos os anos, quinze ou vinte voltam aleijados – disse Doneus e desta vez Julie não olhou para ele, apesar de saber que ele a fitava, querendo ler seu pensamento. Não olhou, pois se lembrava de que ele podia ler em seus olhos o que ela escondia no seu coração.
Conseguiu dizer finalmente: – Quantos desses acidentados há em Kalymnos?
– Impossível saber. Digamos uns mil.
– Mil? – A palavra escapou, nascida de um medo terrível. Encarou Doneus, sem temer o que ele podia ver: – Mil?
Doneus concordou e só então Julie reparou naquela estranha conversa, pois os perigos que seu marido enfrentava no mar deveriam ser o último assunto a ser ventilado.
Depois do jantar voltaram para a sala, onde Eleni serviu café e licores. Doneus sentou-se junto a Michalis e ela e Tracy no sofá.
– No que trabalha Michalis?
– Ele tem dois hotéis na ilha de Mykonos e outro em Atenas.
– Como ele os dirige?
– Visitamo-los freqüentemente; mas, nesta época do ano, não há muito o que fazer e gostamos de estar aqui.
Julie perguntou hesitantemente:
– Tracy, como você se sentiria se ele fosse um apanhador de esponjas?
Um profundo silêncio se seguiu. Tracy procurou o maço de cigarros e ofereceu-o a Julie. Procurava ganhar tempo.
– Eu detestaria, Julie, confesso – respondeu Tracy, fixando Julie deliberadamente.
– Eles vão por cinco meses – disse Julie, quase que para si mesma, com a mente em tal confusão, que não podia pensar claramente.
– Sim, é um longo tempo. Mas você se acostumará, como todas as mulheres daqui.
Julie cerrou os pálidos lábios. Esse temor pelo marido, o que significava? Poderia tão forte sentimento nascer da piedade?
– É curioso, como disse Doneus, que todos os rapazes estejam deixando a ilha. Não há outro trabalho que eles possam fazer?
– Infelizmente, não. Há um pouco de agricultura, mas geralmente as mulheres trabalham nela. Não temos indústrias ou nada mais de importância. Exportamos um pouco de laranjas e é tudo. Como sabe, temos apenas dois vales e neles há plantações de sidra, uvas e figos; depois, mais acima nas montanhas, ainda há pequenas áreas de terra fértil; mas a ilha é quase toda rochosa, espetacular e lindíssima, mas a verdadeira colheita vem do mar. Apanhar esponjas é o único trabalho para os quinze mil homens que constituem a população da ilha.
– Você disse que esse meio de vida estava acabando.
– Está. Mas o quanto é bom para os homens é triste para a subsistência da ilha.
– Sobre o que estão conversando? – perguntou Michalis do outro lado da sala e Julie olhou para ele. Era bonitão, mas muito diferente de Doneus, pois tinha o rosto redondo e trigueiro, era mais baixo e corpulento. – Podemos participar ou é confidencial?
– Por favor – convidou Tracy –, nós duas já começávamos a imaginar se vocês ainda se lembravam de que tinham esposa!
O resto da noite foi muito agradável e ambos foram convidados a voltar na semana seguinte.
– Obrigado, viremos com muito prazer – disse Doneus sorrindo e olhando para Julie, que concordou. – Estaremos aqui a mesma hora.
Durante o caminho de volta para casa, no lindo carro que iluminava esguios ciprestes e elegantes palmeiras, Julie estava muito quieta. Seus pensamentos voavam em caótica desordem, da ansiedade que sentia pelos perigos aos quais o marido se expunha em seu trabalho à cena que fatalmente se desenrolaria ao chegarem em casa. Continuava a ver aquele rapaz, ajudado pelo outro que ainda estava ileso, mas que dentro de quatro meses voltaria para o mar, mergulhando nas águas profundas, possivelmente nu, em busca de sua subsistência. Antes que ele voltasse, sua mãe, esposa e irmãs, acenderiam velas para São Nicolau ou Santo Estêvão ou qualquer outro santo, indo diariamente à igreja, rezando... rezando... Por cinco longos meses, elas rezariam sem cessar...
Um quarto de hora depois, Julie estava dizendo boa noite para Doneus e esperando que não houvesse uma discussão. Efêmeras esperanças... Ele deixara Jason fora e a porta estava aberta.
– Preciso esperar por Jason – e expressivamente concluiu: – Estarei com você mais tarde.
Julie parou, encarando-o de cabeça erguida. – Doneus, nós já discutimos isso hoje pela manhã.
– Começamos a discutir – corrigiu ele. – Eu a avisei, Julie, e não estou disposto a alterar minha decisão. Estamos casados, minha querida.
– Eu já lhe disse que foi um erro!
Os olhos dele brilharam divertidos, ainda que mostrando inflexibilidade e o coração dela quase parou.
– É assim que você considera?
– Não desejo ser uma esposa para você, Doneus. Desculpe. – Reparou que os lábios dele estavam cerrados e o queixo duro. A cicatriz latejava, o que era um sinal de zanga nele. No entanto, essa zanga não transpareceu quando ele disse:
– Não se pode voltar atrás, Julie. Temos que seguir em frente. Sou seu marido agora e pretendo continuar a sê-lo.
Ela olhou ao redor desamparadamente, notando a porta aberta. Mas para onde poderia ir se saísse dali correndo? Na verdade, não desejava fugir... Julie sentiu-se apanhada numa armadilha e repentinamente começou a chorar.
– Se ao menos você fosse um cavalheiro...
– Mas não sou, não é? Pelo menos, não a seus olhos. Sou um simples aldeão grego, por quem você gosta de ser acariciada, embora se envergonhe de permitir que eu faça amor com você. Você é melhor do que eu, Julie. Melhor do que um pobre apanhador de esponjas. Não, eu não sou um cavalheiro e, como você não me considera como tal, não espere que eu aja como um, apesar de não entender por que me acha grosseiro por desejar um relacionamento normal com minha própria esposa! – Virou-se para observar Jason, que entrava. – Venha, Julie. Você se sentirá como na noite passada; até mais feliz, pois não estará tão acanhada. Venha – disse suavemente –, venha e seja minha esposa.
– Sua mulher, você quer dizer! Foi assim que o motorista se referiu à esposa de um grego: sua mulher, ele disse!
– Mas é somente uma expressão. Eu penso em você como minha esposa, não como minha mulher. – Sua voz era calma, sem zanga, mas firme e inflexível. – Lágrimas nestes adoráveis olhos? – Chegou-se para mais perto e tomou-a nos braços. Ela tentou resistir, mas ele a segurou, tornando aquele abraço indefensável. Seu beijo era muito desejoso, muito possessivo. Julie desistiu de lutar, hesitando em admitir que ele a dominava com seu encanto e persuasão, mas tendo que fazê-lo.
– Seja sincera, Julie. Por que me deixou fazer amor com você na noite passada? – Ele parecia tão confiante, tão certo de que a resposta seria atração física, que ela sentiu uma raiva nascer dentro dela e, antes que pudesse raciocinar, disse-lhe que era por piedade.
– Piedade? – Lá estava ele, parado como se tivesse recebido um golpe que o tonteasse inteiramente. – É isso o que sente por mim? – A palidez era visível sob a cor bronzeada de sua pele. Julie sentiu que o havia ferido irreparavelmente e seu terno coração clamava contra aquelas palavras hostis e duras. Procurava se convencer de que eram verdadeiras, mas isso não a fazia sentir-se menos culpada. – Meu Deus! Piedade! E eu quero sua piedade? Não! Pode guardá-la! – E, sem dizer mais uma palavra, deixou-a parada junto à mesa, tremendo da cabeça aos pés, acreditando que a dor que sentia em seu coração era remorso pelo que havia dito impensadamente. Quão profundamente ela o havia ferido!
– Por que eu fui dizer isso? Seria muito mais caridoso que eu o tivesse deixado pensar que era atração física. – Mas agora estava dito e Julie só podia esperar e rezar para que o tempo tudo apagasse...

– Diga-me – perguntou Doneus bruscamente, durante o café da manhã seguinte –, tudo foi fruto de piedade? O desejo de reformar esta casa; o tempo que passou comigo; os passeios que demos juntos? Tudo piedade? Vamos! Responda, garota! Responda às minhas perguntas!
– Doneus, eu... eu...
– Sem rodeies! Eu sei o que é piedade. Eu a senti pelos homens cujos corpos foram mutilados. Não use a piedade para desculpar o que você fez. Responda às minhas perguntas, já disse!
Apavorada, Julie via nele a satânica figura do passado.
– Sim, Doneus... sinto muito... – Lágrimas brotavam-lhe dos olhos. Vendo que eram de pura pena, ele permaneceu de pé junto à mesa, de onde ela não ousava se levantar, tremendo com a violência da cena. Doneus veio para perto dela e, repentinamente agarrando-a pelos ombros, obrigou-a a se levantar.
– Que espécie de homem você pensa que eu sou, Julie? Pensa que aceitarei sua piedade? Você é uma fraude e eu odeio suas mentiras. E pensar que eu fui tolo bastante para afirmar que logo você saberia de tudo... Vá embora para sua casa assim que quiser. Amanhã estará ótimo para mim.
Deixou a casa e entrou no carro, que se perdeu numa nuvem de poeira. Julie sentou-se novamente, ainda tremendo e com o coração cheio de remorso e medo. Sua casa... podia ir agora... Ele a estava libertando porque não queria sua piedade... Qual a razão de se casar com ela para depois libertá-la? Sem sua piedade, ele estava conformado a viver indefinidamente com ela... Mas, agora que sabia, queria que ela se fosse... Era incompreensível e ela supôs que fosse devido a seu inato orgulho. Também incompreensíveis eram as palavras: “E eu fui tolo bastante para afirmar que logo você saberia de tudo...”
Preocupada, levantou-se, deixando seu café, como já o fizera Doneus, praticamente intacto. Tirou a mesa e lavou a louça. Para casa... Estaria ele esperando que ela tivesse ido embora quando voltasse logo mais à noite? Foi para seu quarto e viu suas roupas penduradas ali, num pedaço de cano, suspenso do teto com cordas presas em ganchos de ferro. Sua casa... seu luxuoso dormitório, banheiro e sua sorridente criada...

Por que se dirigiu para os portões do castelo não sabia. Sentia-se impelida por uma força estranha que, como em outras ocasiões, a obrigava a fazer algo contra seus instintos. Notou que as flores não eram tão numerosas e que algumas árvores já estavam com uma coloração amarelo-bronze, deixando suas folhas caírem como pássaros deslizantes.
Jason veio até a grade, latindo como se adivinhasse a presença dela... e num momento Doneus apareceu. Ficou de um lado da alta grade de ferro e ela do outro.
– O que quer? Já lhe disse para ir embora!
– Doneus... Tracy e Michalis... o que pensarão?
– Explicarei. Vá embora, já disse!
Julie olhou para o alto das grades. Barras entre eles. Inquebráveis e irremovíveis barras...
– Não podemos conversar? – O que estava dizendo? Por que viera até ali?
– Nada temos para conversar. Você é sobrinha de Edwin Veltrovers. Volte para ele. Espero que você já esteja fora de minha casa quando eu voltar logo mais à noite!
– Não posso! Não tão depressa.
– Arranje suas coisas que eu a levo até a cidade. Lá, fique num hotel até o próximo navio. – Virou-se, chamando Jason com uma simples palavra, ela, e não mais em inglês, como costumava, parecendo a Julie que isso selava definitivamente o fim de tudo entre ela e Doneus.
De volta a casa, sentou-se desorientada numa cadeira. O que faria? Algumas semanas atrás, se sentiria feliz com a perspectiva de liberdade, mas agora. o agora sabia que não queria ir embora. A pretexto de arranjar uma desculpa, convenceu-se de que era por causa do seu senso de dever. Havia prometido e cumpriria sua promessa. Ficaria até abril, quando Doneus fosse para o mar.
Foi o que lhe disse quando voltou à noite. Estranhamente, ele nada disse; nem uma palavra. Recusou o jantar e saiu outra vez, em sua bicicleta, rumo ao castelo, com Jason correndo a seu lado, como de costume. E lá ficou a noite toda. Por volta de meia-noite, Julie levantou-se, sentindo frio e solidão, incapaz de acreditar que estivesse sentindo tanto a falta dele. Nas últimas semanas haviam jantado e depois passeado juntos numa espécie de íntimo companheirismo. E agora, sozinha e assustada, sabia que ele estava dormindo no castelo. Estaria em algum horrível galpão? Certamente, não. Ele devia estar lá dentro, pensou desesperada. Voltou para a cama e chorou até que as primeiras luzes da madrugada a fizeram adormecer, mas foi logo acordada pelos latidos de Jason do lado de fora da porta.
Olhou para o relógio. Dez e meia. Apressadamente, pulou da cama e correu a abrir a porta, vestindo apenas sua camisola. Jason entrou, sacudindo vigorosamente o rabo. Pelo menos ele estava contente de vê-la ainda. ali
– Jason, meu cãozinho! – Abaixou-se abraçando a cabeça dele de encontro ao peito, com seus nervos tensos. Levantando a vista, deu com Doneus parado na porta.
– Onde esteve? – Sua voz era suave e compadecida. Ao ver as linhas do rosto dele se endurecerem percebeu que cometera outro erro.
– Estive bem confortável, obrigado. Pode guardar sua piedade. – Bruscamente passou por ela, indo até o alpendre. Ela o seguiu, mas ele já havia desaparecido pela porta de trás. Voltou então para seu quarto para se vestir.
– Se ao menos eu pudesse entender alguma coisa... – disse logo depois a Doneus, enquanto ele consertava o pedal de sua bicicleta. – Não quer me dizer por que se casou comigo?
– Você vai voltar para a Inglaterra, ou não? – Seu tom gelado provocou-lhe arrepios. Pareciam lhe dizer que, sé resolvesse ficar, viveria sozinha dali por diante.
– Prometi e vou cumprir minha promessa.
Desapaixonadamente ele cortou-lhe a frase:
– Eu a libero de qualquer promessa que me tenha feito.
– Quer que nosso casamento termine aqui?
Com isso ele pareceu titubear e ela reparou que ele estava com olheiras, o que demonstrava não ter dormido à noite, como ela.
Por que se mostrava tão magoado? Seria seu orgulho tão grande que ele sofresse assim?
– Pensei que tivesse concordado que esta seria a única solução.
– Então por que se casou comigo?
– Havia uma boa razão. – Sua voz era ligeiramente mais suave, tendo perdido o tom áspero. – Mas isso não tem mais importância. Você vai embora? – perguntou novamente e Julie sacudiu a cabeça negativamente.
– Vou manter minha promessa.
Doneus virou-se como para deixá-la, mas aproximou-se dela.
– Por quê? – perguntou, sujeitando-a a um olhar inquiridor, antes que ela desviasse a cabeça para fugir a essa pesquisa.
– Por uma questão de honra.
– Honra! – disse amargamente. – Honra e piedade! Vá embora, que é melhor!
Alguma coisa dentro dela lutava para tornar-se um pensamento consciente. Algo que ela não conseguia captar ou entender. Repentinamente, pensou na mãe dele... sabia onde ela morava; Doneus lhe dissera uma vez. Era em Pothaia.
– Vou ficar – disse com firmeza. – Creio que um marido grego nunca obriga sua esposa a ir embora.
– Obriga? – mostrava-se aturdido. – Nunca a mandei embora, Julie.
– Então, não há nada mais a dizer, Doneus – concluiu calmamente, voltando para dentro de casa. Ele foi se afastando na sua bicicleta, enquanto ela se preparava para sair. Pouco depois, tomava o táxi que servia de ônibus e que a deixaria na vila trinta minutos depois.
Era uma casa velha, como a de Doneus, mas não tão isolada. A mulher reconheceu Julie instantaneamente e empalideceu.
– Meu Doneus; meu filho. Não veio com você. Ele está bem?
As palavras eram ditas num péssimo inglês, bem como Julie se lembrava de ter ouvido noutra ocasião.
– Por favor, não se assuste, sra. Lucian. Doneus está bem. – Escolhia cada palavra, falando devagar. – Quero conversar com a senhora. Posso entrar?
A mãe de Doneus inclinou a cabeça enquanto abria a porta para que ela entrasse.
– O que quer conversar comigo? – Ainda parecia assustada. – Tome uma cadeira.
– Obrigada. – Julie sentou-se e foi direto ao assunto, esperando poder fazer com que a mulher entendesse o que ela queria saber. – Sra. Lucian, creio que a senhora sabe por que Doneus quis se casar comigo. Quer me dizer por quê?
Surpreendida, sua face contraiu-se, como se fosse se concentrar um grande esforço.
– Não compreendo, não falo inglês. – Fixava as mãos, deliberadamente, evitando o olhar de Julie.
– Não há alguém que possa servir de intérprete? Quero dizer, algum vizinho que fale inglês?
– Não! – levantou rapidamente a cabeça. – Ninguém aqui fala inglês. Não!
Julie olhava para ela com um ar desconfiado.
– A senhora foi capaz de se fazer entender, quando me viu na Inglaterra. A senhora fala um pouco de inglês e eu quero saber acerca do mistério do meu casamento com seu filho. – Como ela não respondesse, Julie insistiu: – Por que quis Doneus se casar comigo?
– Eu penso... eu penso... como se diz? Para... ter de volta Annoula... – um grande medo transparecia em seu rosto. Um medo maior do que o que demonstrara quando Julie chegara. – Meu filho... sabe que você está aqui, em minha casa?
– Não. Não sabe. Ele não quis me dizer por que se casou comigo, sra. Lucian. Mas não posso crer que tenha sido por vingança.
– Vingança? – A face dela enrugou-se novamente. – Não conheço essa palavra, vingança.
Julie suspirou. Não estava progredindo muito...
– Por Annoula.
– Sim, por Annoula – repetiu a sra. Lucian, fazendo com que Julie suspirasse impacientemente.
– Quando a senhora viu Doneus pela última vez? – perguntou Julie para mudar de assunto.
– Meu filho vem aqui diariamente.
– Diariamente? – Julie estava realmente admirada. – Vem de bicicleta? – acrescentou suavemente, sem desviar os olhos do rosto dela.
– Ele vem de carona, com o amigo, você entende?
– Não – respondeu Julie –, não entendo.
– Com seu amigo – parou por um momento, procurando as palavras, – Seu amigo, o que tem o táxi. Quer uma xícara de café? Gosta de café turco?
Julie mordeu o lábio. Tanto esforço inútil. A relutância da mulher em se abrir, acrescida do fato de uma não falar a língua da outra, inevitavelmente resultou em que o mistério permanecesse indecifrado.
– Não aprecio muito café turco; prefiro uma xícara de chá. A senhora tem chá? – perguntou, imaginando que talvez fosse muito caro para a sra. Lucian comprar. Mas esta sorriu e, alguns minutos depois de desaparecer na cozinha, voltou com uma xícara de chá e alguns biscoitos. Julie, pensativa, ainda imaginava como Doneus conseguia vir diariamente de carona. Parecia tão impossível que Julie preferiu achar que ele usava um carro do castelo. Mas e a gasolina? Não tinha idéia de quanto ele ganhava nem de como recebia seu ordenado. Presumia que o patrão lhe enviasse o dinheiro pelo correio. Obviamente, devia ser entregue no castelo pois, quando Julie ia buscar sua correspondência na vila, nunca havia nada para Doneus. Tinha a certeza de que ele não era muito bem pago, pois uma vez vira um tapete numa loja de Pothaia e Doneus lhe dissera que não podia comprá-lo. O preço era setenta dracmas, ou seja, uma libra inglesa.
– Quer açúcar? – A voz dela trouxe Julie de volta à realidade.
– Só uma colher, por favor.
– Sirva-se.
– Obrigada. – A mulher saiu, voltando logo depois com uma xicrinha de café turco, que ela bebericou várias vezes antes de ir se sentar numa cadeira do outro lado da sala, o mais longe possível de Julie.
– São seus filhos? – perguntou Julie, indicando duas fotografias. A sra. Lucian concordou e sua face sombreou-se.
– Meus filhos, mortos no mar...
Mortos... Julie pôs a xícara no pires, olhando fascinada as fotografias, antes de voltar a fixar-se na velha senhora. Como anteriormente, estava toda de preto, mas sem nada na cabeça. Seu cabelo grisalho era tão fino e ralo que o couro cabeludo aparecia através dele. A mãe de Doneus... tão pequena, tão frágil e tão patética. As linhas do seu rosto, vistas agora na claridade, e não mais na escuridão da tenda, tinham a beleza de uma santa, realçada de uma maneira que só o sofrimento pode fazer. Era meiga e simples. Uma aldeã grega, cujo destino nenhuma mulher ocidental invejaria. – Todos os seus filhos foram apanhadores de esponjas? – perguntou à toa, ao que ela confirmou.
– Meu Doneus... ele foi o único que... que... – Abaixou a cabeça e Julie concluiu:
– Que escapou?
– Isso mesmo. – Silenciosamente continuou a tomar seu café. – Meu marido também morreu, mas sofreu muito primeiro. Entende o que eu digo? Eu lhe mostro! – levantando-se, tirou da gaveta de uma cômoda uma foto que passou a Julie. Nela estava um homem de meia-idade, sentado num banco do jardim de sua casa. Suas pernas pendiam inúteis...
Ardentes lágrimas toldaram os lindos olhos de Julie. A pressão das calmas e escuras águas do oceano tinha trazido luto e dor para aquela mulher. E agora? Cada ano, por ocasião da Páscoa, Doneus sairia num dos cinqüenta ou sessenta barcos, rumo a Creta, Bengasi ou Trípoli. Durante cinco meses, que lhe pareceriam uma eternidade, ficaria esperando... esperando... esperando, com tantas outras mulheres. E também rezaria...
– Você está chorando! – Os olhos dela brilhavam, felizes. – Chora por meu filho; por que não quer que ele seja ferido ou morra?
Perplexa, Julie percebeu que indubitavelmente suas lágrimas haviam operado um milagre nas feições da velha. Era como se uma grande felicidade tivesse nascido dentro dela. As lágrimas rolavam pelas suas faces e Julie as limpava com as costas da mão.
– Choro pela senhora, por seus filhos e por seu marido.
As feições da mãe se transformaram. Era novamente uma velha... muito velha e muito triste...
– Então não chora por meu Doneus?
– Doneus não foi ferido, sra. Lucian.
– Ainda não, mas será algum dia. Chore agora. É melhor que chore agora.
Confusa, Julie sacudiu a cabeça. Se ao menos tivessem um intérprete! – Não entendo o que a senhora diz.
A mãe dele enrugou a testa e abriu as mãos num gesto de desânimo. – Também não entendo. Se você chorasse por Doneus, então eu entenderia.
Seria melhor que chorasse agora. Julie tentou apreender o significado dessas palavras durante um bom tempo, sem resultado. Era melhor que chorasse agora do que esperar até que Doneus fosse ferido ou morresse...
– Não há alguém por aqui que fale inglês? – perguntou novamente, tendo a mesma resposta.
– Não temos ninguém que fale inglês e meu filho fica zangado... muito zangado, se gente sabe... sabe... segredos.
– Compreendo... – murmurou Julie, e realmente compreendia.

Preparara uma refeição gostosa para as seis horas, mas Doneus não apareceu. Colocou tudo no forno de barro lá fora, mas a lenha queimou à toa. Depois, o fogo se apagou de uma vez e o fomo esfriou, bem como o jantar. Pensou em comer alguma coisa, mas sentia-se tão mal com o que soubera naquela tarde que não poderia engolir nada.
Estava chorando quando finalmente ele chegou, às dez e meia. Estava sentada no escuro, não vendo razão para acender uma luz e gastar óleo. Doneus a chamou com um pouco de ansiedade na voz.
– Estou aqui. – Jason pulou-lhe nos joelhos e ela afagou-lhe a cabeça, sentindo um estranho conforto no calor de sua amizade.
– O que está fazendo no escuro? – Doneus acendeu uma vela e com ela o candeeiro, colocando-o sobre a mesa. – Você está doente? – Sem sombra de dúvida havia ansiedade em sua voz e por alguma estúpida razão isso provocou-lhe mais lágrimas.
– Não, Doneus, não estou doente, mas... mas eu pensei que você não... não fosse... voltar para casa.
Com a surpresa estampada no rosto, perguntou: – Você se importaria se eu não voltasse?
Julie ergueu o rosto banhado em lágrimas, reprimindo um soluço que lhe subia à garganta. Ele parecia muito cansado e deprimido.
Sua malha preta escurecia ainda mais o tom de sua pele e acentuava as linhas de seu másculo rosto. A cicatriz estava muito branca e Julie nunca a tinha visto tão pronunciada.
– Me importaria sim, Doneus, e muito.
Houve um grande silêncio, intenso e profundo, antes que Doneus procurasse a mão dela e gentilmente a puxasse para perto dele.
– Julie, o que há com você? Por que é assim numa hora e tão arrogante noutra?
– Não sou. Eu não quero ser arrogante. – Seus olhos se umedeceram novamente. Murmurou tremendo: – Abrace-me, Doneus...
Carinhosamente ele a abraçou e ela descansou a cabeça no seu peito. Nenhum som se ouviu até que Jason, não gostando de ser esquecido, deu um pequeno latido, encostando-se às pernas de seu amo. Julie e Doneus se separaram. Algumas lágrimas haviam manchado a malha dele e automaticamente ela passou a mão para limpá-las.
– Eu fiz um jantarzinho, mas está frio – disse num tom abafado. – Acho que posso esquentá-lo no fogão a óleo.
Os braços dele voltaram a rodeá-la e ela olhou para o rosto dele, vendo somente dissimulação. Ele lhe sorriu e beijou seus lábios trêmulos.
– Onde está a comida? – A prosaica pergunta quebrou a tensão e Julie deu um suspiro de alívio.
– No forno, lá fora. Vou buscá-la.
– Não, eu vou. – Olhou para a mesa. – Você ainda não comeu?
– Esperei por você.
Outro momento de profundo silêncio. Doneus sacudiu a cabeça como quem desiste de entender e saiu para o jardim para buscar a travessa de carnes e vegetais que Julie lá deixara.
– Está tudo frio. Mas eu esquento num minuto.
– Eu posso fazer isso. – Sentava novamente ao lado dele, que se virou para olhá-la.
– Você alimenta Jason, enquanto eu arranjo isto – disse delicadamente.
Entraram os dois no alpendre, com Jason seguindo-os, pois ouvira seu nome na boca do dono.


Capítulo VIII


Terminaram o jantar antes que Julie tivesse coragem de contar a Doneus sobre a visita que fizera a sua mãe. Sabia que teria que lhe contar antes que ele fosse vê-la, mas o medo de que ele ficasse zangado não a deixava decidir-se. No momento ele estava de bom humor e não parecia ressentido com ela.
– Você foi ver minha mãe? – repetiu admirado. – Pensei que ela não fosse digna de você.
Julie engoliu em seco, sacudindo vigorosa mente a cabeça.
– Eu ainda estava zangada quando você me convidou para ir a sua casa; mas, agora que a encontrei, gostei muito dela.
Doneus nem tomou conhecimento de suas palavras.
– Por que você repentinamente decidiu ir visitá-la?
Julie encontrou seu olhar inquiridor que tão bem conhecia.
– Queria saber por que você se casou comigo...
Um fraco sorriso apareceu em seus lábios; um sorriso com um toque de amargura.
– E ela lhe disse?
– Você sabe que não. Mas porque não fala inglês direito.
– Ela raramente fala. – Quedou-se silencioso, mergulhado em profundos pensamentos. – Raramente fala inglês e, no entanto, ela... é uma mulher corajosa... – murmurou quase inaudivelmente.
“Por que a hesitação?”, pensou Julie “... e, no entanto, ela... o quê?”
Doneus estava perdido em seus pensamentos, quando finalmente Julie disse: – Certamente ela foi muito corajosa indo à Inglaterra sozinha. – E depois de uma pequena hesitação. – Suponho que você a tenha mandado.
Doneus foi incapaz de responder-lhe imediatamente e, quando o fez, foi numa voz totalmente inexpressiva.
– Ela não se importou de ir à Inglaterra. Você lhe perguntou diretamente por que eu me casei com você?
– Naturalmente. Nada havia a ganhar com rodeios.
Doneus sorria novamente, mas desta vez a amargura foi substituída por diversão. – E o que ela disse?
– Que você se casou comigo por vingança.
– Ela usou essa palavra? – levantou as sobrancelhas duvidando e ela então explicou que praticamente pusera a palavra em seus lábios.
– Ela me contou que você a visita diariamente.
Julie alcançou o bule e encheu duas xícaras de café. Estavam ainda sentados à mesa e a suave luz amarelada do lampião brincava com suas feições, acentuando sua beleza e pondo em seus olhos um brilho que parecia refletir todo seu interior: o encanto de sua natureza terna e meiga. Como em outras ocasiões anteriores, Doneus parecia fascinado com o que via; de tal modo que Julie achou que ele havia esquecido de tudo e estava sonhando acordado.
– Como é que você vai até lá? – Aventurou, esperando acordá-lo. Os olhos dele se voltaram para a xícara de café que ela lhe dera.
Tomou um grande gole antes de depositá-la no pires.
– Uso o carro – respondeu depois de ponderar muito.
– Você tem dinheiro para tanta gasolina?
– Eu me arranjo para reabastecer o carro; é preciso que eu veja minha mãe diariamente; ela não tem ninguém senão a mim. Naturalmente tenho parentes e bons vizinhos, mas sou seu único filho vivo e meu pai também morreu.
– Ela me disse, e eu vi as fotografias de seus irmãos. Me senti muito triste quando estava lá conversando com sua mãe.
– Suponho que sentiu piedade por ela também. – Duras e cruéis palavras. – Mamãe não precisa de piedade e, se descobrir que é isso o que sente por ela, jamais a convidará para sua casa novamente.
– Posso sentir compaixão por ela, Doneus?
– E qual é a diferença? – perguntou friamente.
– Eu também a admiro profundamente. É uma mulher forte e corajosa.
A expressão dele suavizou-se e notando isso, Julie pediu-lhe que contasse mais sobre sua mãe. Ficou sabendo que ela se casara com quinze anos e que, menos de um ano depois, já tinha um bebê.
– Com dezoito anos ela já tinha três meninos, o que era uma bênção num país onde as meninas têm que ter um dote, o que seria extremamente difícil para eles. Meu pai morreu muito cedo, deixando-a com três filhos para criar. Também ficou inválido por muitos anos. Ela lavava e passava as roupas de duas famílias, uma inglesa e outra americana; plantava sua própria horta e fazia todas as nossas roupas.
Estava tão perdido no passado que Julie ouviu-o, sem interrompê-lo, observando em seu rosto moreno a estranha e selvagem beleza das linhas; linhas essas de um deus grego, nobre e corajoso. Sua voz, profunda e rica, se suavizava quando falava de sua mãe e seus olhos eram ternos. Nesse clima de intenso envolvimento sentimental, o magnetismo dele era tão intenso que Julie sentiu o pulso acelerar e seu coração bater mais forte. Seu marido a prendia num mágico encantamento. Imaginava como, tendo uma vez experimentado seu amor, pudera decidir-se a não mais repeti-lo.
– Como aconteceu de seu pai ser tão mais velho do que sua mãe? – perguntou quando ele finalmente se calou. Julie falou quase sem fôlego pois ainda se sentia profundamente afetada pela força da personalidade do marido.
– Meu pai tinha seis irmãs e, como não poderia se casar sem ter achado marido para todas, tinha trinta anos quando ficou livre.
– Não entendo, Doneus. Por que não podia se casar antes das irmãs?
– Por causa do costume grego de terem os irmãos que providenciar o dote das irmãs. Um rapaz com muitas irmãs tem pouca probabilidade de se casar cedo.
– Mas que extraordinário! – exclamou.– Sempre pensei que na Grécia os homens fossem poderosos, superiores em tudo.
Doneus estava realmente se divertindo, apesar de Julie sentir a presença da profunda mágoa que ela lhe infringira por suas palavras, das quais ela amargamente se arrependia.
– Por estranho que pareça, o homem é sempre quem manda na casa, apesar de paradoxalmente a dona da casa ser sempre a mulher.
– Mas, se é assim, como é que o homem se torna o chefe, como se o fosse?
– Costume, minha querida. No Oriente as mulheres são sempre consideradas inferiores.
– E você, considera a mulher inferior? – perguntou, lembrando-se de como ele lhe dissera enfaticamente que a via como sua esposa e não como sua mulher.
– Decididamente, não! Poderia considerar minha mãe inferior? Não, Julie. Não sou da escola que considera a mulher como uma possessão sobre a qual se deva externar sua autoridade. Admito que gostaria que minha mulher me respeitasse – disse olhando-a nos olhos. – Gostaria que ela acatasse meus desejos e que cedesse a eles, mesmo quando houvesse diferença de opinião. Tenho a certeza de que assim seria o certo.
Julie permaneceu calada por um longo tempo, observando as sombras formadas pelo fogo do lampião de cima da mesa.
Este marido dela... era um homem de bons princípios, inteligente, de percepção aguçada, e era obviamente idealista, para quem contava mais o valor moral das coisas que o material. Como podia um aldeão possuir todas essas finas qualidades? Como podia falar tão bem o inglês e ser tão culto? Tivera vontade de lhe perguntar sobre sua educação, mas a diplomacia e boas maneiras a impediram.
De mais a mais, Julie tinha a certeza de que desconfiaria da resposta dele. Ele lhe falava sempre educadamente, mas também sabia ser cruel e sarcástico de vez em quando, como o fora recentemente.
– Fale-me mais sobre os costumes – pediu impulsivamente. – São tão estranhos, pelo menos para mim!
Sorrindo, ele começou a lhe explicar as leis relativas à propriedade. A moça que trouxesse uma casa no dote seria para sempre dona legal da mesma.
– As propriedades aqui são herdadas sempre pela linha feminina. Assim, passa da mãe para a filha mais velha. A ironia disso é que o homem trabalha para obter essa propriedade; mesmo os que deixam a ilha continuam mandando dinheiro para conseguir o dote de suas filhas ou irmãs. Chama-se prika em grego.
– Então o marido não é o dono e senhor como pensávamos?
– Ele é sempre o chefe, mas nunca o proprietário. Não por herança, pois as famílias são numerosas e há sempre uma filha que herda.
– Seus irmãos eram casados?
– Ambos morreram com dezoito anos. Um morreu um ano depois do outro.
– Oh! Doneus... Que horrível deve ter sido para sua mãe... e para você também...
– Foi muito cruel – acrescentou com o nervo junto à cicatriz tremendo. – Quase acabou com minha mãe...
– Posso imaginar... – Julie tinha os olhos perdidos ao longe e, enquanto falava, seu pensamento voava. –... dois setembros, quando os barcos de esponjas voltaram... primeiro um filho e depois o outro... – olhou para Doneus. – Como foram trazidos seus irmãos?
– Foram enterrados na costa norte da África.
– Sua mãe... deve se preocupar muito com você. – Julie não queria ter dito aquilo mas, novamente, pensava alto. Doneus, que a fixava de modo singular, deu um sorrisinho, como que achando que ela era contraditória e meio infantil.
– É natural que ela se preocupe comigo. Afinal, o mar já levou três de seus homens e tenho certeza de que ela acha que me levará também. – Sorriu francamente. – Contudo, eu retornei são e salvo!
Da última vez, sim. Talvez até das próximas, mas... Julie sentiu-se sufocar como se de repente precisasse de ar pois sua garganta estava apertada de medo. Ele não poderia sobreviver eternamente, pensou. Um setembro, voltaria ferido... ou não voltaria, ficando para sempre numa terra distante, enterrado lá. Ele ainda estava muito perto dela, que, baixando os olhos, desejou que ele não tivesse lido neles o quanto temia por sua segurança. Voltando a pensar em sua mãe, perguntou-lhe excitadamente:
– Por que vocês dois moram separados?
– Eu gostaria de morar com ela, mas ela prefere morar sozinha. – A determinação, em suas palavras, deu a entender que ele considerava o assunto encerrado e teve a certeza disso quando o ouviu dizer: – Não sei como você se sente, Julie, mas estou com sono. Tive Um dia muito cansativo hoje!
Julie levantou-se começando a juntar os pratos do jantar para levá-los ao alpendre.
– O que fez o dia todo? – perguntou curiosa.
– Toda a sorte de trabalho; o castelo é muito grande.
– Você faz mais jardinagem, não é?
– Não até dez horas da noite, minha querida – respondeu impenetrável.
Julie pôs os pratos numa bacia de água fria. Não havia água quente e ela não se incomodava de esquentá-la. Além disso, estava excitada e esperançosa. Sentia, não sem alguma surpresa, que desejava estar com Doneus aquela noite. Gostaria de sentir seus braços envolvendo-a, seu corpo perto, macio e aconchegante. Sabia que isso significava sua completa rendição. Somente agora encarava a realidade e admitia o verdadeiro motivo pelo qual não quisera ir embora para casa, abrindo mão de sua liberdade. Nunca mais seria livre e, pensando bem, não queria ser livre novamente. Não mais se importava que Doneus fosse um simples aldeão, um simples apanhador de esponjas. Ele era seu marido e finalmente ela queria ser sua esposa.
Repentinamente percebeu que ele não lhe dera uma resposta satisfatória quanto a seu trabalho no castelo, mas deixou passar. No momento, não estava particularmente interessada nisso e havia um convidativo sorriso em seus lábios, quando entrou na sala vinda da cozinha. Doneus percebeu o sorriso que demonstrava que ela estava alegre e desejosa dele, bem como ansiosa para ver como reagiria. Como deixara Jason sair há uns minutos e agora este estava novamente em casa, trancou a porta e disse, ignorando a expressão de Julie:
– Boa-noite, Julie. – E virando-se para Jason: – Nada de latidos esta noite. É só um burrinho que relincha no alto da montanha, o que você está ouvindo. Kali nikta.
Julie fixava atônita a porta pela qual seu marido desaparecera. Depois do carinho com que ele enxugara suas lágrimas, depois da agradável refeição durante a qual tanto conversaram... Sem uma palavra ele se fora... Alguns minutos antes poderia jurar que a discussão tinha sido esquecida, mas agora sua atitude mostrava o contrário. Vagarosamente entrou em seu quarto, despiu-se e deitou-se. Mas o sono não veio e ficou se virando na cama. Era óbvio que Doneus ainda estava magoado. Se assim era, deveria lhe pedir desculpas. Isso mesmo, pediria desculpas.
A porta do quarto dele estava encostada e, assim que ela a empurrou, cedeu.
– Está acordado, Doneus?
– Estou. Alguma coisa errada?
– Posso entrar?
– Naturalmente. – Acendeu uma vela na mesa de cabeceira enquanto perguntava. – O que é?
Aproximou-se da cama, o rosto pálido e os olhos úmidos.
– Doneus eu quero lhe dizer que estou arrependida do que lhe disse... sobre sentir piedade, quero dizer... Eu o magoei e me sinto terrivelmente mal...
– O que é que você quer me dizer na realidade, Julie? – perguntou depois de uma pausa e ela chorava convulsivamente, demorando para poder responder, procurando articular as palavras.
– Você disse que nosso... nosso casamento deveria... deveria ser normal... Lembra-se?
– Não há nada que eu possa esquecer. – retrucou com certa ironia. – Bem, Julie, foi o que eu disse, mas na ocasião não tinha a menor idéia de que era só piedade o que você sentia por mim. Não quero que você me procure por esse motivo.
A cicatriz pulsava novamente e seu negro cabelo estava despenteado. Julie sentiu um irresistível desejo de correr seus dedos por eles a despeito da fria recepção que tivera. O que seria essa emoção que tomara conta de todo o seu ser? Desejo, piedade, ou ambos? Poderia ser o despertar do amor? Amor? Olhou para o marido. Não poderia nunca amá-lo... não deveria nunca amá-lo! Seu trabalho era tão perigoso! Amá-lo significava viver para sempre angustiada. Não podia aceitar a idéia de viver eternamente esperando a volta do marido, são e salvo ou ferido. Ou então receber um pacote com seus pertences das mãos de um chefe dele que lhe diria ter sido ele enterrado numa praia distante... não, não deveria amar esse homem...
– Estou muito cansado – e parecia não só cansado como também perdido e desalentado como se a vida nada mais reservasse para ele.
Julie procurava desesperadamente palavras com as quais pudesse ajudá-lo a vencer essa depressão e restabelecer seu primitivo orgulho. Mas Doneus continuava a falar, dizendo que ela também deveria estar cansada e terminou pedindo delicada mas firmemente:
– Boa-noite. Se você acordar cedo amanhã, por favor me chame, pois tenho outro dia atarefado no castelo.
Não se moveu do lugar para sair e continuou a olhá-lo sob a luz da vela.
– Você... Você não quer que eu fique? – parecia impossível que ela, Julie Veltrovers, estivesse ali se oferecendo a um aldeão grego. Mas era a pura realidade... Continuava a ver o rosto sério do marido, sabendo que tudo o que mais poderia desejar naquele momento seria correr para o santuário de seus braços e o calor de seu corpo.
Finalmente ele falou e sua voz chegou até ela como uma onda de água gelada, afogando a esperança, enquanto o desejo resistia, imune a qualquer força destrutiva. – Não, Julie, não quero que você fique. – Viu-a engolir em seco, enquanto ele próprio se controlava com dificuldade. – Como eu disse ontem, não quero sua piedade.
– Não vim por causa dela – começou, quando ele a interrompeu duramente.
– Veio então por seus próprios desejos? Esses desejos pelos quais já caiu num momento de fraqueza? Poderia aceitá-la por isso, Julie, mas não enquanto a piedade morar em seu coração. Boa-noite e não se esqueça de me chamar amanhã.

Desde aquela noite suas relações foram de fria cordialidade. Eram como duas pessoas que, sem serem totalmente compatíveis, se obrigavam a dividir uma casa, forçadas pelas circunstâncias. Doneus ia regularmente ao castelo, onde passava o dia todo, voltando para casa à noite. Jantava a comida que Julie lhe preparava e que pacientemente mantinha aquecida até a hora em que ele chegasse. Uma vez por semana, iam à vila jantar com Tracy e Michalis. Nenhuma amizade mais íntima se desenvolveu entre as duas, pois nunca Tracy a convidou para visitá-la durante o dia. Julie só podia achar que Doneus tivesse pedido que Tracy nunca o fizesse.
Diariamente Julie se levantava com a luz de um pálido sol se filtrando através das venezianas quebradas, ia até a bomba tirar a água fria com que se lavava. Fazia torradas do sadio pão de nozes caseiro e se sentava para comê-lo diante de seu silencioso marido. O resto do dia estava sozinha, exceto quando Jason se lembrava dela e voltava para casa, ficando com ela até Doneus voltar. Passava o tempo lendo ou passeando, pois o mar estava frio e freqüentemente um vento cortante soprava do oeste.
Um dia sentiu um inexplicável desejo de ver o porto novamente e tomou o táxi, sentando-se ao lado de outras pessoas, homens que a olhavam com indisfarçável curiosidade e mulheres com cestas e sacolas que punham no chão do carro, espremendo os pés de Julie, até que descessem em algum lugar do caminho.
No cais, vagueou olhando o mar. Sempre gostava de olhá-lo, mas agora o via como a um inimigo cruel e destruidor. Pela sua mente desfilavam um após. o outro os acontecimentos dos últimos tempos.
Os inacreditáveis minutos passados na tenda e a conseqüente cena com o tio, seu primeiro encontro com Doneus e a impressão de que dele ficara, mesmo depois de ter deixado a ilha. Relembrou o choque que a presença de Doneus lhe causara ao aparecer na porta da igreja, pois se convencera de que ele não pretendia cumprir sua promessa de denunciar Alastair. Vivamente via seu casamento e Doneus trazendo-a para sua pobre casinha. Tantas cenas e todas dominadas pela figura central daquele de quem não escapava... um homem chamado Aïdoneus.
Distraída, andava pelo cais, onde brilhantes e coloridos barquinhos balouçavam com as ondas enquanto o vento que vinha do mar batia contra seus cascos. Voltou andando pela rua arborizada onde, sentados às mesas, homens bebiam retsina ou jogavam cartas. Ao fundo, enormes montanhas cinzentas se elevavam, formando um semicírculo e parecendo querer abraçar o mar. I thalassa.
Julie parou junto a uma mesa vazia e confusa sentou-se quando um sorridente grego apareceu. Certamente sabia quem ela era, pois seus olhos se voltaram para uma mesa próxima, onde três homens, mergulhadores com seus negros e pontudos gorros, conversavam com os cigarros pendentes dos lábios. Apanhando seu olhar, um deles viu Julie e, virando-se para os outros, falou qualquer coisa em grego. Todos a observavam rindo e ela sentiu-se embaraçada. Seria possível que cada pessoa daquela ilha soubesse quem era ela? Com quem era casada? Já estava na ilha há tempo suficiente para saber que notícias ou mexericos corriam depressa. Assim, uma inglesa casada com um apanhador de esponjas de Kalymnos deveria ser um assunto interessante para aqueles que viviam em marasmo total.
– Café, por favor, com bastante leite.
– Sim, senhora. – O homem saiu, voltando logo depois com sua xícara numa bandeja. Neste momento, um dos homens se aproximou dela, ocupando uma cadeira vazia, demonstrando ter tantas perguntas a lhe fazer como ela jamais poderia supor.
– Gosta de Kalymnos? – perguntou, enquanto o café era posto à sua frente. Ela fez que sim com a cabeça, imaginando quanto saberia esse homem de sua vida.
– Gosto muito.
– Veio para ficar?
– Diga-me – perguntou friamente. – Sabe quem sou eu? – Tratava-o com altivez, mas ele era cara-dura, como todos os gregos quando movidos pela curiosidade, o que era comum.
– A senhora é mulher de Doneus – sorriu, tirando o cigarro da boca.
– Sou sua esposa. – Julie tomou sua xícara e bebeu, desejando que não estivesse muito quente, pois não queria continuar por muito tempo a conversa Com aquele indivíduo.
– Que tal sua casa? Não é uma bela parte de Kalymnos?
Julie assentiu automaticamente, sua atenção presa a um pobre inválido que se arrastava pela rua, com uma cesta na mão. Teria mais ou menos trinta anos. Seu coração batia descontroladamente quando perguntou. – Aquele homem era um apanhador de esponjas?
– Foi um dos melhores de Kalymnos, mas o mar o pegou.
– O que está vendendo?
– Ovos – e acrescentou com desprezo: – Mas quem quer comprar ovos por aqui? Todos têm suas próprias galinhas...
– Chame-o, por favor. Preciso de alguns ovos.
– A senhora? – perguntou estarrecido. – O sr. Doneus... por que, se ele tem tantos ovos?
Julie seguia o inválido. Realmente Doneus trazia sempre ovos do castelo, bem como os outros produtos, mas ela tinha que comprar alguns daquele homem.
– Chame-o – ordenou novamente –, eu os quero!
O homem encolheu os ombros antes de gritar em grego: – Manolis, ela!
Julie comprou os ovos, pagando por eles mais do que o homem pedira. Este lhe sorriu agradecido e seguiu seu caminho, esperando que mais alguém lhe comprasse, mesmo sabendo que a maioria tinha suas próprias galinhas. Julie viu-o desaparecer por entre as árvores da rua. Pagou sua despesa já de pé, deixando o curioso sentado, visivelmente desapontado por ter falhado na missão de arranjar novidades para contar a seus amigos, que o esperavam com os olhos brilhando por antecipação. Tão transparentes esses gregos e tão ingênuos, a despeito de sua curiosidade, que poderia irritar alguém como Julie, não!acostumada a fofocas. Continuou seu caminho, sentindo-se muito deprimida. Precisava trazer algum dinheiro consigo e de alguma forma ajudar aquela gente.


Capítulo IX


Durante todo o trajeto de volta, Julie ponderou sobre sua decisão de mandar vir seu dinheiro para a ilha. Isso não representava dificuldade alguma, mas estava indecisa sobre como aplicá-lo quando este chegasse. Por fim, resolveu expor a questão a Doneus quando estavam sentados para jantar.
– Espero que você não diga que não posso fazê-lo, Doneus – e acrescentou suavemente: – porque eu quero muito.
Ele a olhava com uma expressão singular e ela viu, pelo pulsar do nervo junto à cicatriz, que ele estava comovido com suas palavras. No entanto, não mencionou o dinheiro e disfarçou, perguntando se faria alguma diferença se dissesse que ela não podia ajudar os ilhéus.
– Você me obedeceria?
Julie fixou nele seus lindos olhos cinzentos, francos e suplicantes. Estranho que ela pudesse ser tão humilde com esse homem, apesar de seu inato orgulho e riqueza. A esplêndida situação em que estava acostumada a viver parecia totalmente deslocada quando comparada com a do seu marido. Entretanto, Julie tinha que admitir que ele sempre parecia superior.
– Eu acho que sim – respondeu em tom suave, mas acrescido de uma ponta de esperança de que ele não se opusesse ao que tinha em mente.
– Temo que eu tenha que me opor – disse Doneus depois de um momento de indecisão. – Sabe, Julie, eu ficaria humilhado.
– Não, Doneus, não ficaria. Não sou cega a ponto de não perceber que a maioria do pessoal desta ilha sabe mais sobre os motivos de nosso casamento do que eu e suponho que saibam que eu tenho dinheiro. Algum dia talvez você possa me contar tudo como prometeu, lembra-se?
Depois de uma pausa de expectativa ele somente disse: – Você mesma tomou impossível eu lhe contar tudo.
– Porque senti piedade por você? – Suas palavras saíam com dificuldade, mas esperava obter alguma informação. Vã esperança, pois Doneus simplesmente assentiu, enquanto um vermelho intenso se espalhava pelo seu rosto moreno. – Gostaria de entender, Doneus – murmurou gentilmente, com persuasão nos olhos e na voz, mas sem efeito.
– Você nunca entenderá – assegurou-lhe severamente.
Julie calou-se e voltou a pensar nos inválidos de Kalymnos.
– Como eu disse, o povo provavelmente é sabedor de que eu tenho dinheiro. Assim você não ficaria humilhado se eu gastasse meu próprio capital, da maneira que quero.
Doneus sorriu com amargura.
– Eu certamente seria humilhado. De qualquer modo, deve lhe interessar saber que aquele homem que você viu vende ovos simplesmente para ter algo que fazer. Eles detestam pensar que precisam de ajuda e vendem coisas ou fazem pequenos trabalhos só para se manterem ocupados.
Encarou-o em franco atordoamento.
– Não fariam isso a menos que tivessem necessidade. Precisam de dinheiro!
– Não, minha querida, não precisam. Recebem ajuda financeira.
– De quem? Sei que quase toda a população trabalha como apanhadores de esponjas.
– Praticamente toda a população – corrigiu. – Temos aqui muitos mercadores de esponjas que são ricos. Também os homens que deixaram a ilha para procurar trabalho noutro lugar mandam dinheiro para suas famílias. O homem que você viu, assim como todos como ele, recebe ajuda de um fundo constituído para esse fim por esses ricos mercadores.
– Estendo – disse Julie depois de uma pausa. – Bem, não posso contribuir para esse fundo? Tenho uma grande fortuna; de que me serve o dinheiro se não posso aliviar algum sofrimento?
– Desculpe, Julie, mas tenho que dizer não – sentenciou inflexível.
– Então, de que me serve o dinheiro – perguntou frustrada –, se quero gastar um pouco e não posso?
– Seu dinheiro lhe será útil quando for para casa. – Olhava-a inquiridoramente, querendo saber o efeito de suas palavras, mas Julie baixou os olhos ocultando sua expressão. – Lembre-se de que estará na Inglaterra durante cinco meses por ano e que precisará de dinheiro.
– Não de todo ele – argumentou fracamente. Doneus fez que não ouvira e mudou de assunto, fazendo com que Julie soubesse que não se discutiria mais a questão. Se ao menos ele não fosse tão orgulhoso! Sua altivez fora a culpada por tudo o que se passara entre eles. Culpada da sua recusa em tê-la como esposa. Isso era tudo o que mais queria, sentindo esse desejo crescer dentro dela cada dia que passava, mais e mais forte.

Uma semana mais tarde, descia pela ruazinha da vila, quando Astero convidou-a para um refresco. Kyria, sua filha, ainda estava empolgada pela alegria de seu sucesso, orgulhosa de si mesma e um pouco condescendente com Maroula, a vizinha do lado, que tivera uma filha. Era a terceira menina e o povo já dizia que ela era incapaz de ter um menino. Depois de ficar meia hora com Astero e Kyria, Julie foi até a casa de Maroula para ver o bebê. Ao entrar, percebeu que ela estivera chorando. Ao ver-lhe estampada no rosto a culpa e o desapontamento, Julie perguntou zangada:
– O que importa, se o bebê é perfeito?
– Foi isso que eu disse para Davos; mas ele está tão zangado que não fala comigo, nem olha para nossa filha.
O sangue de Julie ferveu e aconteceu de dizer justamente quando Davos estava entrando:
– É o homem que determina o sexo da criança. Se Maroula teve uma menina, não é culpa dela.
Davos parou, os olhos brilhando e seu boné de mergulhador caído para trás da cabeça.
– Não é nada disso! – gritou e, por alguma estranha razão, Maroula e sua mãe o olharam horrorizadas.
– Não fale com a sra. Doneus assim! – advertiu a sogra. – Trate-a com respeito ou o sr. Doneus ficará sabendo!
A raiva de Davos sumiu milagrosamente. Virando-se para a visitante:
– Desculpe, sra. Doneus. Não pensei direito – estendeu as mãos em direção da esposa que tinha o bebê no colo e que parecia muda de susto. Julie apanhou um olhar atordoado dele para a sogra, que o advertira de que devia tratá-la com respeito ou seu marido ficaria sabendo. Ela o chamara de sr. Doneus. Sempre era chamado de sr. Doneus. Por que a distinção? Todos eram chamados somente por seus nomes. O próprio Doneus se referia aos outros sem usar o senhor, mesmo se reportando à gente do castelo. – Ela sempre tem meninas... meninas! – Davos estava dizendo desgostoso. – Não temos dinheiro para um prika, imagine para três! Olhou para a esposa que começava a chorar. – Quantas meninas mais você vai ter ainda? – Era o homem grego se revelando totalmente e Maroula desandou a chorar desconsolada. – Provavelmente dez ou vinte!
Julie dificilmente conseguiu se controlar. Quis dizer alguma coisa mas se conteve. a tempo. De nada adiantaria esclarecer o aldeão sobre o planejamento familiar e Maroula continuaria assim tendo um filho por ano até que fosse muito velha para isso.
– Eu a acho encantadora. – Julie tomou a criança dos braços da mãe que acabara de amamentá-la. – É rechonchuda e lindinha. Você deve estar orgulhoso de sua filha, Davos. – Mas Julie pensava em seu próprio desapontamento, pois acreditava que se tivesse um filho de Doneus, certamente seu casamento se tornaria normal. Tinha a certeza de que ele não se importaria se fosse uma menina. Ficaria feliz com o bebê, não ligando para que sexo fosse. Mas Julie não estava esperando um filho e ali, segurando aquela coisinha querida no colo, sentiu as lágrimas lhe subirem aos olhos. Talvez nunca lhe fosse permitido experimentar a deliciosa sensação de orgulho e felicidade que só a maternidade pode trazer.
Julie contou ao marido o incidente da raiva de Davos, enquanto comiam a carne e vegetais que ela preparara para o jantar.
– Você lhes disse que é o homem quem determina o sexo da criança? – Doneus parecia se divertir muito. – Não me admira que ele ficasse indignado! Sempre se culpa a mulher por isso. – Sua diversão crescia e ela estava pronta para explodir, mas disse simplesmente:
– Ele é ridículo! Não pode ficar feliz porque a criança é perfeita?
– Acho que ele está. Mas o nascimento de uma menina sempre traz desapontamento e tristeza.
– Seria muito esquisito se só nascessem meninos; e parece que é o que todos desejam nesta terra!
Doneus deu uma de suas raras gargalhadas e disse:
– Seria mais do que esquisito, seria horrível...
– Não tem graça nenhuma, Doneus. E também isso de a mulher ser considerada impura durante quarenta dias! Nunca ouvi tamanha barbaridade! Maroula não pode entrar na igreja enquanto isso. Se fizessem isso comigo, nunca mais pisaria na igreja!
– É o costume, Julie. Leis podem ser mudadas, mas costumes é difícil. Não se esqueça de que estamos numa ilha, isolados da Grécia, onde em Atenas as mulheres mudam diariamente os costumes, influenciadas pelo que vem de fora.
– Maroula estava me contando que depois dos quarenta dias ela pode ir à igreja mas não pode entrar.
– Pode entrar, mas depois que o padre a aspergir com água benta.
– Era isso que eu ia dizer. Contou-me também que se seu filho fosse um menino, o padre o tomaria nos braços e o levaria até o altar; mas, como é menina, será deixada nos degraus. É estúpido. Não consigo entender. Acho esse procedimento profundamente revoltante.
– Você se revolta com isso, não? – Novamente ele parecia se divertir e Julie estava tão zangada que poderia até brigar com ele, o que seria absurdo, pois não era culpado do que ela classificava de atitude desumana e sem coração.
– Estive hoje com o marido de Kyria e ele me convidou para ser um dos padrinhos.
– Convidou? E você aceitou?
– Naturalmente. Não se recusa tal convite.
– Então irei ao batizado?
– Espero que você venha comigo, Julie.
Ela assentiu mas não pôde resistir à tentação de dizer:
– Imagino que até nos batizados haja diferença de sexos.
Doneus riu com vontade novamente.
– Não, não fazem diferença e você poderá verificar isso pessoalmente.
O bebê foi batizado no sábado e, quando Doneus e Julie chegaram à pequena casa, já havia uma multidão de parentes e convidados. Gente demais para caber na casa, mas todos se arranjaram em algum lugar. Muitos mergulhadores estavam presentes, todos com suas malhas pretas e seus bonés pontiagudos. Doneus parecia deslocado entre eles pois usava seu temo marrom e camisa branca de colarinho. De fora chegavam até eles as risadas e gritos de dúzias de crianças e da cozinha o cheiro de carnes, alho, bolos e tortas. Várias mulheres passavam apressadas com travessas de comida que levavam para outra sala. A pia batismal de bronze maciço estava no meio da sala, com os dois padrinhos e o padre junto dela.
Kyria conversou com Doneus acanhadamente, visivelmente honrada com sua presença. Observando-o, Julie reparou que ele tratava a moça com delicadeza e atenção, mas havia nele uma superioridade inequívoca. Com grande interesse Julie aproveitou para reparar nas relações dele com os habitantes do lugar, chegando à conclusão de que todos o tratavam com deferência e respeito, o que era extensivo a ela. Foi-lhe dada uma cadeira bem na frente e a cadeira junto dela, presumivelmente para seu marido, permanecia vazia, embora muita gente estivesse de pé. Julie lembrou-se da ocasião em que, querendo dirimir uma dúvida, perguntara a Doneus se ele era realmente um apanhador de esponjas. Ele lhe afirmara que sim. E o que mais poderia ser?, raciocinava, quando viu o mais idoso dos padres abrir um velho e gasto livro. O trabalho no castelo deveria ser para encher o tempo durante os meses em que não estivesse no mar. Fora mais afortunado do que seus colegas mergulhadores; era uma sorte que Doneus tivesse um trabalho para se ocupar, enquanto os outros permaneciam ociosos; também o fato de morar junto do castelo fora uma vantagem para ele. Era racional supor que o proprietário, precisando de quem o ajudasse, automaticamente contratasse Doneus para o trabalho. Julie deu um longo suspiro.
O mistério se tornava mais e mais profundo, pois se Doneus era um deles, por que os outros apanhadores de esponjas, suas mulheres e parentes e até mesmo os padres, o tratavam com tanta deferência? Fosse ele um dos fabulosos armadores gregos ou um grande proprietário de terras, essa deferência não seria menor.
Uma coisa estava agora clara, pensou Julie com certa satisfação. Por qualquer razão a posição de Doneus era superior aos demais habitantes da ilha e certamente, antes de sua chegada ele devia tê-los prevenido de algo, pois os olhares divertidos a ela dirigidos, mais pelos homens que pelas mulheres, lhe davam essa certeza.
– Sra. Doneus, a senhora está confortável? – Asti, a sogra de Kyria, aproximara-se dela, atravessando toda a multidão para lhe perguntar.
– Sim, obrigada, Asti.
– Todos estão tão felizes, hoje! O primeiro filho de Kyria é um menino! Mas nós acendemos velas durante a gravidez dela. Acendemos na igreja e em casa diante de nossos ídolos – juntou as mãos em direção ao teto – e benditos os santos que nos mandaram um menino!
Benditos os santos! Francamente! Era outra demonstração da cultura primitiva daquela ilhazinha. Parecia impossível que tais costumes e usos pudessem ainda sobreviver.
Uma repentina calma se fez sentir na sala e todo o barulho cessou, mesmo o das crianças, depois de um minuto ou dois. Kyria carregava seu bebê nos braços, feliz como todos podiam ver. Julie pensou em Maroula, cujo bebê seria batizado na semana seguinte, quando a pia batismal seria levada para sua casa como o fora agora para a casa de Kyria e Adonys. Julie soubera que Maroula queria que Doneus fosse padrinho da pequena Helena, mas que Davos se negara a convidá-lo, alegando que só seria justo se o bebê fosse um menino. Contudo foram convidados para o batizado e Julie comprara idênticos xales para os dois bebês e Doneus idênticas correntes de ouro com cruzinhas.
Julie observava o ritual, sentada bem na frente. Duas mulheres vestidas de preto, carregando jarros de cerâmica, encheram a pia de água quente. Outra mulher adicionou água fria. Julie não pôde deixar de sorrir quando um dos padres mergulhou o cotovelo na água da pia, falou em grego com uma das mulheres que esvaziou o jarro, experimentou novamente, mais água e assim por diante até que o jovem padre achasse que a temperatura estava boa. Começou a cantar palavras que atravessaram os séculos inalteradas. Todos permaneciam em silêncio e Julie reparou nas expressões de respeito. Todos os batizados eram realizados com essa solenidade, porque a Igreja Ortodoxa Grega remontava a eras distantes. Somado ao significado religioso, o batismo dava à criança as condições legais de um ser humano. Sem ele, não seria registrada, não podendo mais tarde votar ou mesmo arranjar um emprego.
Doneus tomara o bebê de sua mãe e o olhava enternecido, com um sorriso nos lábios. Logo depois, procurou o olhar de Julie. Esta viu o sorriso se apagar e sua expressão mudar para um misto de resignação e mágoa. Baixou os olhos, só os tomando a levantar quando o bebê soltou um choro de protesto. Doneus o dera ao padre, que agora o estava mergulhando na água, enquanto traçava sobre ele o sinal da cruz, e o outro padre continuava a cantar palavras do velho livro. As crianças cercavam a pia com velas acesas, solenes, com seus rostinhos morenos muito sérios. Era uma cena comovente. Pobre bebê! Estava sendo mergulhado na água várias vezes e protestava veementemente. Depois foi posto numa toalha de linho, enquanto Kyria segurava as roupinhas novas para que o padre as benzesse. O outro padrinho segurou-o para que Doneus colocasse nele a corrente de ouro, e a cruzinha pousou no seu peitinho rechonchudo e rosado. Instantaneamente parou de chorar, e Julie imaginou que poderia ser o toque das mãos de Doneus que asseguraram que tudo estava bem e que ele não mais iria para as mãos dos bárbaros que o queriam afogar...
Fascinada, Julie observava a cena que se desenrolava junto à pia, tendo como atores os padrinhos e os padres. Doneus sobressaía dentre todos. Quão distinto era ele, ainda parecendo deslocado, naquela cerimônia que tinha um quê de pagã, a despeito dos dois sorridentes e simpáticos padres ortodoxos.
A cerimônia terminou e, como que obedecendo a uma ordem, a confusão se estabeleceu. Todos riam e cantavam. Astero vestia o neto, enquanto Kyria beijava a mão dos padrinhos; primeiro a de Doneus, depois a de Stephanos.
– Gostaria de segurar um pouco meu bebê? – perguntava Kyria, alguns minutos depois, a Julie. – Minha mãe, minha tia e minha sogra brigam para segurar o pequeno Yannis, que só quer colo; mas eu o trouxe para a senhora, assim elas podem discutir sobre qualquer outra coisa.
Julie, sorrindo, pegou a criança nos braços, enquanto Kyria se afastava para com seu marido atender aos convidados.
– Para que é isto? – Julie indicava uma bolinha azul presa ao xale do nenê.
Doneus sorriu meio sem jeito, como que esperando que sua explicação fosse recebida com benevolência.
– É para espantar o olho do demônio – disse, contemplando o plácido rostinho de Yannis.
– Que estranhas crenças vocês têm, Doneus. Sempre vi essas bolinhas nas cabeças dos burros e imaginava para que serviriam; achei que eram pura decoração, conforme a vontade do dono.
– Mas não são. Essa proteção contra o olho do demônio é uma coisa muito séria, por aqui.
– E você acredita nisso? – perguntou, tomando consciência de que o calor da criança lhe proporcionava um enorme prazer.
– Não, não sou supersticioso. A maioria dos gregos educados adota uma atitude de tolerância para com essas crenças.
Julie tomou entre as suas a mãozinha de Yannis, reparando em como era pequena e morena, com as unhas rosadas e bem curtas. Por suas palavras, Doneus lhe dera a oportunidade de voltar a um assunto que a intrigava.
– Onde você foi educado, Doneus?
– Atenas e Inglaterra – respondeu, depois de uma pausa.
– Inglaterra? – Balançou a cabeça e encarou Doneus com incredulidade. – Você cursou uma universidade na Inglaterra?
– Sim, Julie, cursei uma universidade inglesa – respondeu, um tanto arrogantemente.
– Mas como? Quero dizer... se o seu trabalho é tão mal remunerado?
– Um tio meu morreu sem ter outros parentes senão minha mãe e eu. Como ela não quis uma dracma do dinheiro, decidi custear minha educação.
Julie ficou pensativa. Como ele era estranho... Depois de ter cursado uma universidade, voltara a seu antigo trabalho de apanhador de esponjas. Outra circunstância para se somar ao mistério. Julie sentiu que devia se empenhar em procurar uma pequena peça que repentinamente se encaixaria a outra e solucionaria todo o quebra-cabeça.
No sábado seguinte, foram ao batizado de Helena. Ao contrário de Yannis, ela riu durante toda a cerimônia, e o bater dos pezinhos na água demonstrava o quanto estava gostando. Na última vez que o padre a tirou da água, sua barba fez cócegas no queixinho da criança e a risada desta foi tão contagiante que todos riram com ela... todos menos Davos e seus emburrados parentes. Conquanto Doneus não fosse o padrinho, também colocou no peito de Helena a cruz com a correntinha de ouro e, virando-se para Davos, disse-lhe em tom firme:
– Que encantadora filhinha, Davos... Também Maria e Elli. Você deve sentir-se muito orgulhoso, hoje.
Um profundo silêncio se seguiu. Os olhos de Maroula estavam úmidos, quando disse baixinho:
– Obrigada, sr. Doneus, por dizer isso. O senhor é muito amável. – Não olhou na direção do marido, mas para Julie, que sorria.
– Venha, Davos. Pegue sua filhinha. – Continuou a falar em grego, e observando as feições a seu redor, Julie podia adivinhar que as palavras dele eram de crítica. Davos estava visivelmente embaraçado, bem como seus parentes. Depois de alguns momentos de tensão, os dois sorriram e Davos tomou a pequena em seus braços. – Você não está agradecido por ser sua filha tão bonita e perfeita, Davos? – Este assentiu, sem saber o que dizer, enquanto olhava a face sorridente do bebê.
– Sim, sr. Doneus – conseguiu dizer finalmente. – Sim... – E continuou em grego. Ainda conversavam quando a mãe de Davos se aproximou e tomou Helena, insistindo em que ela, e ninguém mais, deveria vesti-la.
– Obrigada, Doneus – sussurrou Julie, quando se sentaram à mesa, esperando por Davos e Maroula. – Foi notável como você conseguiu fazer com que Davos reconhecesse seu erro.
– Ele não é má pessoa. Mas seu desapontamento foi grande! Não creio que torne a tratar mal Maroula.
– O que disse ele quando falou em grego?
– Desculpou-se por ter sido tão grosseiro com Maroula – deu uma boa risada – e perguntou se era verdade que o homem determinava o sexo da criança...
– E você lhe disse que sim, naturalmente.
– Disse, mas ele ficou muito triste e humilhado. Então eu lhe citei o provérbio que diz que “a mulher faz o homem”, e isso o consolou.
Julie riu, servindo-se de um prato que Maroula lhe estendia. – Eu me sinto tão importante! É muito estranho que somente os homens se sentem à mesa para comer.
– Novamente o costume, minha querida. Você é privilegiada. Se passarão muitos meses até que uma mulher se sente novamente à mesa com homens para uma refeição.
Olhando-o de soslaio, Julie disse sem muita expressão:
– Você é olhado com respeito por esta comunidade, Doneus.
Ele simplesmente sorriu e virou-se para Davos:
– Por favor, encha meu copo, Davos. Retsina.
Maroula ofereceu peixe a Julie, que aceitou. – Há muito tempo que não como tanto! Maroula preparou um banquete digno de um rei!
Maroula olhava sem entender, até que Doneus traduziu o que Julie dissera e então esboçou um gesto de protesto, mostrando que as travessas de peixe, polvo e carnes ainda estavam cheias. Doces diversos, alguns com caldas apetitosas, foram servidos, e mais tarde, enquanto dançavam ao som do bouzouki, mulheres apareciam com bandejas, cheias de copos com ouzo ou fatias de bolo do batizado.
Doneus insistiu para que Julie se levantasse e tentasse alguns passos da dança grega; como ela era boa aluna, depois de uns momentos de embaraço, realmente se divertiu. Quando finalmente se retiraram, entrando no carro que Doneus emprestara do castelo, todos saíram para vê-los partir.
– Até quando vai a festa? Ninguém parece querer ir embora tão cedo!
– Vai até a madrugada! – Doneus virou-se para ela e, vendo-a recostar-se no assento do banco, perguntou: – Cansada?
– Sim, mas muito feliz. Realmente me diverti muito.
– Divertiu-se? – E mergulhou num silêncio que continuou durante todo o trajeto. Mas foi um silêncio agradável, e quando chegaram em casa e saíram do carro, parados no pátio, parecia que ambos relutavam em deixar aquela quietude e entrar na casinha, com sua mobília pobre e suas paredes caiadas.
A noite estava embalsamada por toda sorte de exóticos perfumes e fragrâncias que só ali podiam ser sentidos. Milhares de estrelas brilhavam num céu de profundo azul e uma enorme Lua iluminava os picos rochosos e as encostas verdejantes, espalhando sua languidez pelo calmo mar, cuja superfície brilhava como um espelho. Na ilha em frente, via-se a luz da janela de alguma casinha aninhada na praia, enquanto a torre da igreja se erguia, bem delineada e branca, contra as rochas nuas do maciço vulcânico atrás dela.
Nenhuma brisa ou vento sacudia as folhas das árvores. As palmeiras e ciprestes do castelo apareciam escuros, de encontro às suas paredes enluaradas. O gracioso iate branco dormia, parecendo um brinquedo, visto daquela distância. Era uma noite de magia, uma noite para amantes, e instintivamente Julie deu um passo, aproximando-se do marido. Estaria ele também sob a influência do encantamento daquela noite? Olhou-o ao luar. Ali nas sombras, seu rosto combinava com seu nome. Parecia duro e sem piedade, até mesmo. cruel. Mas seu magnetismo persistia, e Julie se sentia atraída por ele. Uma tarde tão agradável e uma noite tão linda... O amor de seu marido seria uma perfeita conclusão... Se ele a abraçasse e beijasse... e...
Ele se mexeu e Julie aninhou-se em seus braços, correspondendo ao seu beijo, amando-o, tentando-o, suplicando...
Fitou-a, enquanto a segurava afastada dele. Seus dedos que desceram por seus braços, segurando-lhe as mãos. Um súbito desânimo tomou conta dela; em casa, na Inglaterra, sempre fora admira e elogiada. Não teria atrativos para o homem que agora era seu marido? Tivera uma vez, naquela inesquecível noite. Apertou-lhe a mão levantando o rosto, convidando para um beijo. Sorrindo fracamente com uma ponta de amargura nos olhos, ele lhe tomou a cabeça entre as mãos e pousou seus lábios nos dela. Mas nesse beijo havia somente carinho, nada mais.
Afastando-se dela, disse em tom indiferente:
– Vamos, Julie, é muito tarde. O pobre Jason deve estar imaginando por que ficou abandonado tanto tempo.


Capítulo X


A primavera chegara à ilha e na última semana da quaresma o porto estava cheio de barcos pintados de fresco. A bordo, os homens trabalhavam numa atividade febril, preparando-se para viajar, enquanto suas mulheres faziam pães e cozinhavam carne salgada com que eles se alimentariam durante os próximos cinco ou seis meses. DO alto de uma montanha, Julie observava esse movimento febricitante. Pequenas lanchas iam e vinham do cais aos navios ancorados ao largo. Mesmo daquela distância, o cheiro dos fornos subia até ela, que imaginava o quanto se movimentava a cidade toda para preparar tanta comida. Todos se mexiam depressa e nesse ritmo continuariam até que os sinos de todas as igrejas badalassem e em triunfo se ouvisse elevar-se um grito: – Cristo ressuscitou!
Então a festa começaria.
A própria cidade adquirira um aspecto totalmente novo, aparentando prosperidade por toda a parte. Isso resultava dos empréstimos que os bancos faziam aos capitães, pois estes sempre pagavam adiantado seus mergulhadores, para que pudessem prover suas famílias enquanto estivessem fora. As tavernas estavam cheias e Julie imaginava quanto dinheiro seria deixado ali, antes que os navios zarpassem. Numa espécie de despedida, esbanjavam dinheiro, como que sabendo que alguns podiam não mais voltar.
Nos últimos meses, Julie procurara de todas as maneiras reparar o dano causado por suas palavras, que somente agora reconhecia não traduzirem seu verdadeiro sentimento para com o marido. Gradualmente, e a princípio com certa relutância, chegou à conclusão de que amava Doneus, mas, dada sua atitude fria e reservada, jamais lhe diria isso. Estava claro que ele não a amava, e a inata altivez dele a impedia de lhe revelar o que lhe ia pelo coração.
A princípio, experimentou todos os truques conhecidos pelas mulheres, criando situações que lhe permitissem confessar seu amor; mas a fria atitude dele a desencorajava. Também era orgulhosa. Um orgulho herdado de gerações e gerações de aristocratas, e ficava furiosa por um simples aldeão tratá-la daquela maneira fria e impessoal. O resultado fora essa pacífica coexistência entre eles. Inúmeras vezes ele lhe dera liberdade para ir embora, se quisesse. Ele não a queria junto de si e por vezes ela ficava realmente zangada, a ponto de lhe perguntar se havia se casado só para mandá-la embora, mas se continha para manter o pacto e não criar mais obstáculos. Seu orgulho e o dele continuavam crescendo e se tomando uma árdua e perigosa estrada pela qual ambos teriam que caminhar.
Entretanto, o coração de Julie via com agonia os dias passarem e se aproximar a Páscoa. Vira tantos homens inválidos em Kalymnos. Sempre as feições deles se desfaziam e via neles o seu marido, visualizando maravilhosos membros deformados e incapazes de trabalhar. Ficaria a seu lado para sempre, mas tremia só em pensar no quanto seu orgulho seria atingido. Odiaria ser ajudado ou depender dela.
Por fim, voltou de seus devaneios e iniciou o retomo, descendo a colina para tomar o táxi comum.
Era cedo ainda e, deprimida e cansada, não entrou em casa, mas continuou a passear pela estrada poeirenta, olhando os arredores vestidos com a magnificência das cores da primavera. Seus passos a levaram até a entrada do castelo, por um caminho ladeado de árvores que se mostravam lindamente floridas de cor-de-rosa. Amava a ilha o seu povo. Aprendera até a amar a casinha onde poderia ter sido feliz, se Doneus a amasse também e tivesse permitido que ela fizesse as reformas que tinha em mente.
Os portões do castelo se erguiam diante dela. Doneus passara três dias no porto, mas hoje trabalhava ali. Receosa de que ele pudesse vê-la, voltou-se, mas Jason apareceu latindo e sacudindo o rabo, feliz por encontrá-la. Tinha que fazê-lo calar-se e voltar. Muito em breve ele também estaria triste, pois iria para a casa da mãe de Doneus, que o trataria muito bem, mas ele sentiria a falta de seu dono.
Eram tão íntimos que às vezes Julie o invejava. “Acho que poderia viver só com os animais...” A frase do poema de Walt Whitman veio-lhe à mente, enquanto acalmava o cão. Doneus tinha amigos na ilha, mas Julie tinha a impressão de que o cão significava mais para ele... e certamente significava mais do que ela...
– Quieto, Jason! Seu dono não deve saber que estou aqui! – Parou, corando intensamente, ao ver Doneus encostado na grade.
– Que houve, Julie. Algo de errado?
– Não, simplesmente vim até aqui.
Ele a olhava com uma estranha expressão, através das barras da grade.
– O castelo a interessa?
Assentiu, furiosa consigo mesma por ter ido até ali.
– Claro que me interessa. É tão bonito, tão imponente neste penhasco, longe de tudo... – disse finalmente.
– Bonito? Mais bonito do que a minha casa, é o que você quer dizer? – Sua voz trazia amargura.
Os lábios dela tremeram.
– Por que você sempre me entende mal, Doneus?
Com essa reprimenda, ele desviou o olhar e, depois de uma ligeira hesitação, perguntou:
– Gostaria de visitar o castelo, Julie?
Encarou-o, surpresa, e sentiu-se repentinamente feliz.
– Os proprietários não se incomodam? – Enquanto isso, Doneus abria o portão, ignorando sua pergunta e convidando-a a entrar. Ela seguiu bem próxima dele, pela alameda de árvores centenárias e vendo o mar turquesa se estendendo até o horizonte.
– Os jardins são lindos! – Julie se sentia perdida no meio de tanta beleza. – Você deve gostar de trabalhar aqui. – Admirava todo o colorido panorama. – Quantos jardineiros há aqui?
– Três, além de mim. Os outros três são permanentes.
– Três? – A despeito do tamanho dos gramados, que não eram totalmente visíveis de onde estava, não achava que fossem necessários quatro jardineiros. – O dono deve ser muito rico!
– É o número de seus jardineiros o que demonstra a riqueza de um homem? – perguntou friamente, e Julie calou-se. Outra vez dissera o que não devia e por isso permaneceu silenciosa, se recusando a responder a sua pergunta. Um dos jardineiros apareceu, enquanto eles avançavam em direção ao castelo. Era muito defeituoso, e o outro que trabalhava mais além também. Compreendeu imediatamente. O proprietário empregava-os para ajudá-los, e essa era a razão pela qual três eram necessários. Devia ser um homem muito bom, e ela desejava encontrá-lo, algum dia, bem como a sua esposa. Sabia que era casado, mas que não tinha filhos, e isso era tudo o que conseguira obter de seu marido quando lhe perguntara a respeito, pois ele sempre se mostrava reticente quando o castelo de Santa Helena era mencionado.
Com a reforma, o castelo fora aumentado e era constituído do três corpos que formavam um pátio interno. Doneus conduziu-o pelo lado e eles entraram pela porta do sul, acima da qual se viam belas esculturas de pedra e, dos lados, estátuas de ninfas em mármore.
Do átrio, com arcos ricamente entalhados, subia uma suntuosa escada que dava numa galeria de pinturas. Julie parou, estarrecida com tanta beleza, e pensou que seu tio, dono do castelo de Belcliffe, nunca sonhara com tamanho esplendor.
– Que quadros! – murmurou. – Devem ser da escola veneziana.
– O proprietário acha que Ticiano e Bellini ficam bem aqui. – Doneus mostrou uns cristais de Veneza que estavam nas mesinhas ao longo da galeria. – Esses também ficam bem aqui.
Entraram na sala de visitas, uma maravilhosa sala com enormes janelas em arcos, estuque decorado e estátuas clássicas. A mobília era antiga, e as paredes, forradas de tapeçarias e coloridos quadros chineses. A extraordinária lareira de mármore era ladeada por esguias colunas de pedra cujo rendilhado de galhos entrelaçados, apesar da delicadeza do trabalho, formava uma estrutura sólida.
Julie, parada no vão da porta, exclamou:
– Nunca vi nada tão maravilhoso!
Doneus olhou para ela com o seu rosto inexpressivo. Não participava do entusiasmo dela, o que parecia estranho, pois a convidara para visitar o lugar onde trabalhava.
– Gostaria de tomar alguma coisa?
– Seria certo aceitar? – perguntou, admirada.
– Naturalmente. – Olhou para o relógio. – Na realidade, é quase hora do lanche. Sempre tomo o meu aqui, e não há mal nenhum em você tomá-la também. Direi a Polymnea que o prepare enquanto vemos o resto do castelo.
– Tem certeza de que não faz mal eu ficar? – Julie ainda estava em dúvida, pensando que tal comportamento, aproveitando-se da ausência dos donos, não era próprio de seu marido.
– Está tudo certo, Julie. Nós tomaremos o lanche na salinha de almoço, pois nos sentiríamos perdidos, na sala grande. O dono só a usa para festas.
– Fale-me mais sobre ele, Doneus. Tem muitos amigos na ilha?
– Os ricos mercadores de esponjas, os armadores e gente como Tracy e Michalis. Também visitantes de outras terras, como da Inglaterra, França e outras partes da Europa.
Julie ficou pensativa, sentindo uma leve desconfiança nascer dentro dela.
– E da América, naturalmente?
– Da América também.
– Há uma coisa que me intriga – disse, depois de lançar um olhar por toda a elegante sala. – Pensei que eles cobriam a mobília com capas, para protegê-las da poeira; geralmente se faz isso, quando se viaja por muito tempo.
– Aqui os empregados são mantidos, e assim não há necessidade de cobrir tudo. É melhor que a limpeza continue como de costume. – Falou rapidamente e saiu, dizendo que iria até a cozinha ver Polymnea, que supôs Julie fosse a governanta.
Ela ficou na galeria, apreciando os quadros até que ele voltasse, e então foram ver os quartos. Eram todos mobiliados com gosto e sem exageros. As características originais do castelo tinham sido conservadas e, sempre que fora necessária uma reforma mais drástica, esta obedecia à beleza de suas primitivas linhas.
– Há um terraço no telhado, como você sabe – disse Doneus, quando o último quarto foi visto. – Vamos lá para cima?
Subiram por uma escada de pedra e chegaram à luz do sol. A vista era magnífica, com o mar calmo, as altas montanhas rodeando a costa e as inúmeras ilhas cercadas pelo intenso azul das águas.
– É fantástico! – Como tinha medo de elogiar muito e ser mal interpretada outra vez, só disse isso e ficou apreciando a vista daquele privilegiado ponto do castelo.
A mesa estava posta, quando entraram na sala de almoço, e Julie não se surpreenderia se Doneus tivesse tocado a campainha para serem servidos; porém, ele lhe disse que esperasse um pouco, pois iria buscar o lanche na cozinha. Sentia-se muito estranha, sentada ali, preparando-se para usar a fina porcelana e as pratas do dono do castelo. Supôs então que fosse servida na louça comum, de uso dos empregados, e concluiu que uma refeição a mais não faria tanta diferença.
Comeram barbouni, seguido de finas tortas rega das com mel, e beberam kokkinelli, que era uma variação de retsina, típica da ilha e muito mais gostosa do que o vinho branco que costumavam tomar em casa de Tracy e Michalis. Era mais raro do que a retsina comum, e Doneus lhe chamou a atenção para o delicado sabor. Julie se admirava de como ele ousava tomar um vinho tão fino de seu patrão.
Apesar desses pensamentos um tanto constrangedores, uma deliciosa sensação de bem-estar a invadiu, e ela gostou de estar ali. Ainda mais que Doneus, deixando de lado suas frias maneiras, conversou todo o tempo, animadamente.
– Gostaria de ver os jardins, agora? Ou prefere ir para casa?
– Adoraria ver os jardins. – Hesitou um pouco. – Mas não estou afastando você de seu trabalho?
– Tenho realmente trabalho a fazer, mas posso gastar ainda uns minutos com você. – Sorriu para ela, que lhe correspondeu.
– Você precisa ir para o mar? – perguntou logo depois, enquanto caminhavam pelo gramado. – Isto é, você não tem um emprego permanente, aqui?
Ele a olhou prolongadamente e perguntou de maneira singular:
– Você preferiria que eu não fosse?
– É tão perigoso... – Parou, reprimindo as palavras reveladoras que lhe vinham aos lábios. Não podia se arriscar a lhe dizer a verdade, ver na face dele estampada a surpresa e ouvi-lo dizer que não a amava... Só o estava prevenindo dos perigos do mar. Sabia que era seu meio de vida, pois os homens eram bem pagos e sua pobreza era decorrente dos meses em que ficavam desempregados.
– Você está pensando que eu posso voltar aleijado? – Ainda o olhar curioso, e Julie baixou os olhos para que ele não pudesse ler neles toda a verdade.
– É possível, você sabe. Todos sabem.
– E se isso acontecer? – perguntou ironicamente. – Posso me tornar um estorvo para você? Não tema. Minha mãe, que cuidou de meu pai tantos anos, cuidará de mim também.
Lágrimas inundavam seus olhos. Por que tinha ele que lhe falar daquela maneira? Se ao menos pudessem voltar ao relacionamento de antes... Na sua zanga, dissera palavras das quais ele nunca se esqueceria, e nunca a perdoaria...
– Eu... eu acho que vou para casa agora, deixando você trabalhar – conseguiu dizer por fim, vendo um dos jardineiros se aproximar carregando umas caixas de papelão.
– Kyrios Doneus! – chamou, quando eles se encaminhavam para o portão com Jason latindo ao redor deles. Doneus parou e voltou-se.
– Nai, Petrakis?
O homem estava jogando fora papéis que Julie viu, de relance, serem revistas. A Country Gazette! Então estava explicado como Doneus vira sua fotografia na revista! O pobre homem carregava tudo desajeitadamente, e Doneus tomou-lhe uma das caixas, tornando mais fácil para ele o serviço. Ambos falavam em grego. Depois de algum tempo, o homem se afastou, mas Julie permaneceu parada, olhando para o marido.
– Finalmente, uma parte infinitesimal do mistério está esclarecida. Foi daqui que você pegou a revista com o meu retrato e a deu a sua mãe.
Ele concordou e começou a andar.
– O que disse Petrakis?
– Que vai fazer uma fogueira para queimar o lixo. Calliope... uma das criadas... deu-lhe para queimar, mas ele não tinha certeza de que o... o dono assim desejava que se fizesse.
Por que a hesitação? O que havia de verdade naquilo tudo? Novamente a sensação de desconfiança apareceu. Sentia-se perdida numa densa nuvem de incertezas e, para se livrar dela, daria alegremente a metade de sua fortuna.

Lambri, ou Páscoa, é a festa mais importante, para os gregos, e relembrava os antigos e obscuros mitos do paganismo. Durante toda a semana, os sinos tocavam, chamando o povo para a igreja. No chamado sábado de Lázaro, as crianças se deitavam no chão e se levantavam depressa, rindo da sua ressurreição. Saíam pelas ruas pedindo ovos, que eram pintados de vermelho brilhante, ou então dinheiro. Suas mães faziam koulouri, uma torta recheada dos mais deliciosos sabores. No dia seguinte, domingo de Ramos, os padres distribuíam galhos de murta, que o povo pendurava sobre os ícones, para livrá-los do mau-olhado durante o ano seguinte. As noivas pediam fertilidade, ao tocarem os ramos. Na quarta-feira, os barcos dos mergulhadores eram benzidos, e Julie pediu a Doneus que a levasse para ver a cerimônia. Foram num dos carros do castelo. Doneus, preocupado e silencioso como estivera durante as últimas semanas. Um barco fora escolhido e nele preparado um altar, com lindas toalhas bordadas, flores e os castiçais apanhados da igreja. Expostas no barco estavam coisas com as quais os mergulhadores tinham contato, como pedaços de esponjas, pequenos caramujos e tentáculos de polvos. Muitos padres acompanhavam o bispo, numa procissão, com suas roupas brilhando ao esplendoroso sol de primavera. Subiram todos a bordo e a cerimônia começou. Um mergulhador trouxe o hissope e o bispo aspergiu água benta por todo o barco.
– Que os homens voltem a salvo... – Julie disse baixinho, enquanto as lágrimas corriam de seus olhos. Ouvindo-a, Doneus virou-se, mas ela estava de cabeça baixa e chorando. Piedade!
O bispo benzia tudo: os mergulhadores, a comida, o combustível, o cordame, as engrenagens, a estufa, os aparelhos de mergulho e até mesmo a âncora... Finalmente, a água benta que sobrou foi despejada dentro do capacete de um escafandro, apresentado por um mergulhador. Houve uma série de felizes exclamações e todos se dirigiram ao bispo para beijar-lhe as mãos. Era um espetáculo comovente, pois até os inválidos dele participavam.
A quinta-feira era dedicada à preparação da festa, e Kyria e Maroula apareceram em casa de Julie com ovos vermelhos e também tsoureki, o pão especial da Páscoa.
– Obrigada a ambas. Agradeço muito. – Convidou-as para entrar e percebeu que trocaram um olhar embaraçado. – É muita delicadeza de vocês, e agradeçam a suas mães, pois sei que aqui tem dedo delas também...
Ambas sorriram, felizes e um tanto encabuladas.
– A senhora vai à igreja amanhã? O sr. Doneus vai levá-la? – perguntaram curiosas.
– Sim... – respondeu imediatamente. – Espero ir. – Será que Doneus a levaria? Ela já lhe pedira uma vez, mas ele recusara, dizendo que, além de não entender a língua, se sentiria perdida, pois aos homens e mulheres não era permitido ficarem juntos.
Julie pediu-lhe para ir quando ele chegou em casa, e ele lhe prometeu levá-la no sábado à noite.
A sexta-feira, dia de jejum e abstinência, era o da procissão do enterro. As ruas apinhadas de gente, mulheres chorando e homens muito sérios, todos visivelmente numa espécie de êxtase religioso.
No sábado, às onze horas da noite, os sinos chamavam os fiéis para a vitoriosa cerimônia final. Toda a congregação trazia velas apagadas e a única iluminação da. igreja eram as velas do altar. A meia-noite estas também foram apagadas e, na escuridão, Julie sentia a agitação do povo se mexendo ao seu redor.
Meia-noite! Um padre apareceu com uma vela acesa, e sua voz se elevou num grito de triunfo:
– Christos Anesti!
A essas palavras, os que estavam mais próximos dele acenderam suas velas e se viraram para ajudar os outros a fazer o mesmo. Uma mulher vestida de preto virou-se para Julie, sorrindo com genuína. alegria: – Christos Anesti!
Julie respondeu como seu marido lhe havia ensinado:
– Alithos Anesti! – Sentia-se muito próxima às lágrimas e realmente seus olhos estavam úmidos, quando encontrou Doneus ao saírem da igreja.
– Comove a qualquer um – disse ele sorrindo. – Esta cerimônia é originariamente pagã, pois Adônis também ressuscita hoje...
– Foi linda! Não gostaria de tê-la perdido por nada, apesar de não ter entendido uma palavra do que o padre cantou.
O povo saía da igreja, segurando suas velas acesas e sumindo na noite. Aqueles que conseguissem chegar em casa sem que as velas se apagassem teriam boa sorte durante o ano. Quando Julie e Doneus pararam junto ao carro, três jovens mergulhadores e suas esposas se aproximaram.
– Sr. e sra. Doneus, querem vir conosco? Temos uma grande festa preparada. Venham!
– Obrigado, Spiros. – E virando-se para Julie: – Quer ir?
Julie mordeu o lábio. Queria somente ir para casa e ter seu marido só para si, pois muito breve ele partiria pelo menos por cinco meses. Mas sabia que Doneus lhe fizera aquela pergunta somente por delicadeza, pois seria uma ofensa não aceitar.
– Naturalmente – respondeu, forçando um sorriso.
Foi uma orgia de comidas e bebidas. Começaram com os ovos vermelhos e brilhantes; depois veio a tradicional sopa da Páscoa, seguida como sobremesa, e tudo regado com o famoso vinho de Kalymnos.
Às duas e meia, quando Doneus parou o carro em frente à casa, Julie, apesar do cansaço, teria gostado de ficar mais um pouco ali, conversando. Mas Doneus lhe desejou boa noite e entrou diretamente em seu quarto.
Recusando-se a ouvir os argumentos de Julie, Doneus resolveu que ela deixaria a ilha um dia antes que ele. O Lindos zarparia para Rodes e ele já tinha comprado a passagem.
– Mas eu gostaria de ver você partir – ela protestou, mas de nada valeu.
– Jamais permiti que minha mãe me visse partindo e não vou permitir que você me veja – disse ele, inflexível, e Julie reconheceu que era tolice insistir. Doneus saiu e ela foi para seu quarto, onde, relutantemente, começou a pôr suas coisas na mala, pois no dia seguinte deixaria Kalymnos. Estava quase acabando quando ouviu tímidas batidas na porta da frente. Ao abrir, viu ali parada uma vizinha da sra. Lucian, visivelmente assustada.
– O que foi? A sra. Lucian está doente?
– Doente não, sra. Doneus, mas triste... No coração, entende?
Julie balançou a cabeça e completou:
– Porque Doneus vai para o mar. Mas por que você veio aqui? Procura por Doneus?
– Não o sr. Doneus. – Olhou furtivamente ao redor. – Eu esperei até ele sair, e até um pouco mais, para ver se ele não voltava. Savasti quer vê-la, depressa! O táxi vem vindo e nós podemos pegá-lo, sim?
– O que quer ela comigo? – Julie a olhava curiosa. – Do que se trata?
– Não posso dizer. – A mulher tampava a boca com a mão. – Vamos e Savasti lhe dirá.

Uma hora e meia depois, cada peça do quebra-cabeça estava em seu lugar. Julie, pálida, mas explodindo de felicidade, estava sentada numa poltrona, sorrindo para sua sogra. Fora uma conversa difícil, mas Julie a ajudara com algumas palavras em grego que aprendera ultimamente, e agora sentia-se cheia de gratidão por aquela frágil e idosa mulher que a olhava um tanto apreensiva.
– Você não... não está... orghí?
– Zangada? – Julie riu alegremente. – Como poderia estar zangada com o que a senhora me contou? Esqueceu-se de que eu amo Doneus?
Um doce e sereno sorriso entreabriu os descorados lábios de Savasti.
– Não esqueci. Vou acender velas para todos os santos, por ter acontecido isso de tão bom para meu filho. Eu chorei muito, quando Doneus me disse que você ia embora; então fui à igreja e os santos me disseram que falasse com você, e que tudo daria certo.
– Somente gostaria que a senhora me tivesse contado há mais tempo, pois Doneus e eu não teríamos sofrido tanto! – As palavras da sra. Lucian, dizendo que seria melhor que ela chorasse por Doneus, naquela ocasião, lhe voltaram à lembrança e só então compreendeu-as. Suas lágrimas lhe revelariam que ela amava seu filho.
– Meu filho! Eu via sua expressão todo o tempo e meu coração sofria por ele. – Parou, olhando o relógio. – O táxi passará num minuto. Vá, e meu filho perderá aquela tristeza no olhar!
Julie não conseguia falar. Que tola tinha sido! E Doneus não menos. Somente aquela velhinha tivera juízo. Julie lembrava-se vivamente de suas convicções a respeito do caráter do marido e também de suas desconfianças, quando este lhe respondia com evasivas, a qualquer pergunta que lhe fizesse. Ambos tinham sido inteiramente estúpidos...
– A senhora foi tão corajosa, resolvendo ir à Inglaterra sozinha! Ser-lhe-emos gratos até o fim de nossas vidas!
Savasti se levantara e dirigia-se para a porta.
– Doneus ficou zangado, quando soube. Estava em Atenas a negócios, como já lhe disse; decidi ir porque, todas as vezes que ele olhava sua fotografia, eu sabia que ele a amava. Agora ficará feliz, porque a moça do retrato o ama também! – Articulava as palavras com dificuldade, e Julie às vezes só apanhava o sentido do que estava dizendo.
– Obrigada por tudo o que a senhora fez! Obrigada, querida... querida Savasti.. Mitera... – acrescentou suavemente, e a enrugada face se iluminou.
– Que bom... Poli kala... Você me chamou de mãe. Eu tenho agora uma korí e um filho... – Abriu a porta e viram o táxi vindo pela rua e parando para receber passageiros.
– A senhora não quer vir morar conosco? – convidou-a Julie. – Pense nisso.
– Estou feliz no meu canto, que Doneus tomou tão con... con...
– Confortável? Sim, realmente o é, mas a queremos junto de nós.
– Vou pensar nisso, como me pediu. Tentarei me acostumar com aquele megálos palácio que meu filho comprou.
– É grande, eu admito, mas é um lar, Savasti.
– Então vou pensar e pedir aos santos que me guiem.
Julie sorriu intimamente. Qualquer que fosse a decisão dos santos, levaria sua sogra para morar com eles.
– Adio, minha mitera. Viremos vê-la esta noite. – Julie beijou a enrugada face e saiu.
Pediu ao motorista que a levasse a Santa Helena, notando a surpresa do mesmo. Estaria Doneus no castelo? Não havia dito para onde ia e às vezes ia até o porto... Se tivesse que esperá-lo até a noite, teria uma crise de nervos, pois cada vez que o táxi parava, suspirava impaciente. Finalmente viu-se diante dos portões, com Jason latindo diante dela. Correram juntos pelo jardim e lá estava Doneus. Este carregava um barril cheio de folhas mortas e gravetos, mas parou estarrecido com o que via.
– Julie! – chamou ansioso.
Ela percorreu os últimos metros que a separavam dele, impaciente até mesmo com Jason, que a impedia de chegar mais depressa.
– Já sei de tudo! – ela falou, ofegante. – Sua mãe mandou-me chamar. Estava desesperada porque tinha certeza de que você iria para o mar assim que eu partisse. A princípio queria saber se eu desistiria de ir para a Inglaterra, mas, depois que eu disse que o amava, ela me contou tudo! Doneus, por que você não me disse há muito tempo? E não tente culpar-me de tudo, pois você foi tão tolo quanto eu! Adoro sua mãe; você me havia dito e é verdade! Ela é corajosa e formidável, e eu quero que ela venha morar conosco!
– Julie querida – interrompeu aturdido –, não seria melhor nos sentarmos enquanto você me conta tudo e recupera seu fôlego?
– Não quero me sentar, quero que você me abrace! – Com voz sumida, aproximou-se dele, levantando o rosto e entreabrindo ternamente os lábios, pedindo um beijo: – Abrace-me; Doneus, eu estou calma. Foi um grande choque descobrir que você me amava o tempo todo e que por isso se casou comigo.
Doneus, visivelmente emocionado, olhou para suas mãos sujas da jardinagem.
– Vou lavar minhas...
– Você é cruel! Não quer me abraçar?
Não terminara de dizer essas palavras, quando ele a tomou selvagemente nos braços e a beijou com todo o ardor contido durante tanto tempo... Estava quase sem ar, rindo e chorando ao mesmo tempo, quando finalmente ele a soltou.
– Não quero abraçá-la? Não sei como me controlei, durante todos esses meses! Se eu quero abraçá-la... que pergunta...
Atraiu-a novamente para si, dando vazão à corrente de paixão há tanto tempo reprimida, até que a largou ofegante, suas mãos descendo até sua cintura e aí ficando.
– Aparentemente você sabe de tudo, mas conversemos a respeito. O que, exatamente, minha mãe lhe contou?
Ela não conseguiu falar, por uns momentos, e ficou ali, olhando para ele, como que querendo lembrá-lo de que seus olhos eram reveladores; e ele sorriu ternamente, esperando que ela falasse. As mangas de sua camisa branca estavam enroladas até os cotovelos, e, quando ele levantou a mão para acariciar-lhe o cabelo, encostou seu rosto naquele braço moreno.
– Contou-me que não foi você quem a mandou. Ela foi por iniciativa própria, enquanto você estava em Atenas. Contou-me também do jeito como você olhava para minha fotografia, que, eu suponho, algum amigo seu deixou no castelo!
– Sim, Julie; e foi daí em diante que eu soube de todas as notícias referentes aos Veltrovers.
– E tio Edwin imaginando que tudo era segredo!
– Mas não era, pois esses meus amigos sabiam que tanto seu tio quanto seu primo estavam jogando desesperadamente para ver se reparavam o dano causado à fortuna dos Veltrovers.
– O que você achou da minha fotografia? – Ela não resistiu ao desejo de perguntar, e, meio divertido, mas com voz séria, ele respondeu:
– Vi beleza, bondade e um terno coração. Nunca me impressionei tanto pelo rosto de uma mulher; aquela era a mulher com quem eu adoraria me casar. – Julie corou adoravelmente e ele a beijou, com ternura e quase reverência.
– Sua mãe me contou tudo,como eu já disse. Uma vizinha veio me chamar dizendo que ela estava muito triste.
– Triste? Por que estaria ela triste?
– Porque estava convencida de que, se eu partisse, você iria imediatamente para o mar, com a intenção de... não ser cuidadoso.
– Minha mãe me conhece bem e sabe que foi por ela que deixei de mergulhar.
– Ela acreditava que você não queria mais viver. Pude ver imediatamente que ela se torturara com essa idéia e, em desespero, mandou-me chamar, pedindo-me que não deixasse a ilha. Disse que só assim você não zarparia.
– E você na hora compreendeu que eu não era obrigado a ir?
– Eu tentei, uma vez, saber qualquer coisa por ela; mas, na ocasião, ela estava assustada, com medo de que você soubesse, e de nada adiantou. Desta vez fiz uma troca com ela: eu ficava na ilha se ela me contasse o que sabia; ainda assim, ela relutou e só concordou quando eu disse que o amava. Foi difícil para ela, como você pode imaginar, mas eu dei um jeito de entendê-la. Mas gostaria de saber a história por você, Doneus. Conte-me nos mínimos detalhes.
Seus braços estavam ao redor dela e, por um momento, ele se sentiu incapaz de falar. Parecia irreal ela estar ali, junto dele, e o atordoamento da realidade ainda era muito forte.
– Vamos nos sentar – disse, levando-a para a sombra, para perto de um lago ornamental, cheio de lilases aquáticos e outras plantas decorativas. Jason seguiu-os e deitou-se, assumindo uma atitude displicente.
– A história começa quando meu segundo irmão morreu. Minha mãe ficou tão doente que eu temi perdê-la também. Ela se convencera de que um dia eu também ficaria no mar. Quando esse tio morreu e minha mãe se recusou a tocar no dinheiro, resolvi gastá-lo na minha educação. O que não mencionei foi que me restou o suficiente para comprar, de um mercador de esponjas que se retirava, o seu negócio. Desde então tive sorte. Procurei outra aplicação de capital, pois, como você sabe, as esponjas estão fadadas a desaparecer do mercado. Milagrosamente, um grego que possuía três navios me convidou para seu sócio. Isso foi há sete anos. Fizemos bom dinheiro, – concluiu, levantando a mão e acariciando o rosto de Julie.
– Quando comprou o castelo?
– Nunca havia pensado nisso. Estava contente com a casa que eu construíra. A de Michalis. – Julie lembrou-se de como ele se sentira à vontade, na ocasião. – Entretanto, Santa Helena estava à venda, e eu soube que um hoteleiro milionário queria comprar o castelo para turismo. Não perdi tempo e fechei o negócio. Também, desde pequeno que eu sonhava reformá-lo, porque sempre gostei dele. – Sorriu e beijou-a de leve. – Você também aprenderá a gostar dele.
– Já gosto dele e do dono dele...
– Abençoada mãe! – exclamou Doneus, e logo depois terminou a história que já ouvira, embora desconjuntamente, da mãe dele. Esses meus amigos ingleses deixaram a revista e eu vi sua foto nela. Minha mãe não estava bem e eu lhe pedi que viesse para cá a fim de que eu pudesse cuidar dela. Costumava me ver olhando a revista, e como é muito viva, perguntou-me seu nome. Eu lhe disse, sem imaginar que ela se lembraria do que acontecera e que eu lhe contara quando voltei da Inglaterra. Soube também das minhas loucas palavras ditas a seu tio, quando eu era um simples rapazinho que acabara de perder a namorada. Detesto pensar em meu comportamento de então, mas eu estava desorientado, pois teria que dar a notícia aos pais dela, que a haviam confiado a meus cuidados.
– Era compreensível, Doneus – aparteou ela, sem contudo dizer que, se não fosse esse comportamento, ela não estaria agora sentada ali.
– Tive que ir a Atenas a negócio e, assim que parti, ela foi para a Inglaterra encontrá-la, dizendo que eu a mandara. Você sabe tudo isso. Fiquei furioso com ela, achando que tinha ido longe demais, e também por achar aquilo uma perda de tempo. Mas ela estava firmemente convencida de que você viria até aqui.
– Talvez tenha sido porque eu fiquei aturdida com o que ela me revelou na ocasião. – Doneus não fez comentário e ela concluiu; rindo: – Quando a vi, hoje, ela me confessou que seu único objetivo, era me trazer a Kalymnos. Uma vez aqui, eu me apaixonaria imediatamente por você, pois ela o acha tão perfeito e tão lindo que seria impossível tudo não terminar com um final feliz... – Os olhos de Julie brilhavam, divertidos, mas Doneus estava muito sério.
– Que descrição! Que estranhos adjetivos as mulheres usam! Onde será que minha mãe aprendeu isso?
– Atualmente ela o descreve como um omorphos, que eu presumo seja algo como físico perfeito....
Ele riu feliz.
– Isso soa como se você tivesse tido quase um combate com minha mãe...
– Eu me saí muito bem. Lembre-se de que eu sei algumas palavras em grego!
Doneus ignorou isso e continuou sua narrativa:
– Nunca pensei que você viesse, e fiquei espantado quando recebi seu bilhete. Minha mãe, ao contrário, não se admirou. Disse-me que lhe havia dado meu endereço, que você era um boa moça e que viria na certa. – Julie estava, inconscientemente, apoiando o queixo no peito de Doneus, e ele, abaixando-se, beijou-lhe os lábios suavemente. – Na verdade, eu fiz investigações e me convenci de que você era uma pessoa encantadora. Então pensei em vê-la uma vez que fosse, para guardar na lembrança, como um tesouro, a sua imagem, para sempre. – Calou-se, com a preocupação estampada em seu rosto moreno. – Querida, o que eu disse que a faz chorar?
Ela ergueu seus olhos para ele, que limpou uma lágrima da sua face, esquecido de suas mãos sujas.
– Você me fez chorar porque... você é tão formidável... e eu estou tão feliz... Não sei o que fiz para merecer alguém como você!
Doneus tomou-se categórico:
– Um sorriso, por favor! E nada de tolices sobre eu ser formidável. Um sorriso, vamos!
Ela sorriu, mas logo depois mordeu o lábio inferior, para reprimir as emoções que sentia.
– Se você só queria me ver uma vez, por que me ameaçou, quando foi à catedral? Não acredito que seja porque não tem honra, como me afirmou uma vez.
– Tenho sido honrado em todos os meus desejos, desde o dia em que a vi pela primeira vez. Você é mais linda do que na fotografia, e eu não podia deixar você sair de minha vida sem lutar. Minha mãe começou toda essa história e eu continuei onde ela parou, porque olhar para você foi mais forte do que minha honra. A situação era absurda e, quando você deixou a ilha, pensei que fosse adeus.
– Eu vi você no cais – comentou Julie, procurando um lugar para pousar a cabeça de encontro ao peito dele. – Você acenou um adeus e eu fiquei imaginando se você tinha estado ali o tempo todo, olhando o navio.
– Fiquei, meu amor. Como você se sentiu?
– Meio... fatalista....
Doneus ficou pensativo e não fez comentários.
– Acenei adeus... e um adeus muito triste, pois eu não esperava mais vê-la outra vez. Mas não pude descansar. Até meu trabalho negligenciei; e você sabe que eu tenho muito trabalho a fazer, como já teve ocasião de ver. – Julie lembrou-se da papelada que sempre a intrigara. – Depois de lutar muito com minha consciência, decidi fazer um esforço final para conseguir você. Se, por um milagre, eu conseguisse me casar com você, lutaria até o fim para conquistar seu amor.
– E como lutou... – interrompeu ela. – Como fui cega e obstinada!
– Ambos fomos obstinados. Meu orgulho fora de propósito principalmente.
Julie admitiu que seu orgulho também fora descabido e pediu que concluísse a história.
– Foi essa esperança de que você viesse a me amar o que me levou até a catedral. Pretendia explorar a situação, pegando-a de surpresa, e influenciar você, pressionando-a para que não pudesse pensar com clareza. Fiz você pensar na moça que ia se casar com Alastair e lhe prometi cinco meses de liberdade como um incentivo. Na verdade, esperava que, quando chegasse a Páscoa, você já me amasse. Foram esses cinco meses que decidiram você, não foi, Julie? – Ela concordou e ele continuou: – Para minha sorte, você fez a promessa. – Calou-se, e Julie viu o rápido pulsar do nervo da cicatriz.
– Eu estava em pânico. No entanto, não posso deixar de pensar que sua atitude estava em total desacordo com seu caráter.
– Não me desculpo, Julie. Situações desesperadas requerem medidas extremas. Eu estava lutando pela coisa mais importante de minha vida, isto é, ter você só para mim...
Lágrimas voltaram-lhe aos olhos, mas ela as reprimiu. Lembrava-se da impressão que ele lhe causara, primeiro na casinha, depois na catedral, quando parecia inseguro de si mesmo. Teria alguma vez um homem lutado tanto por uma mulher? E se ele não tivesse lutado?
– Na catedral – murmurou, um tanto receosa de formular a pergunta –, se eu tivesse me recusado a ouvi-lo, você teria ido embora? – Sabia que sim, mas queria ouvi-lo dizer isso; era quase um convite à tortura, mas esperou que ele se decidisse a falar.
– Era meu último e desesperado gesto, mas se você tivesse entrado na igreja, me deixando ali plantado, eu teria ido embora. Nunca pretendi cumprir a ameaça.
– Eu sei! – Suspirou e, por alguma razão, Doneus abraçou-a protetoramente. – Está tudo tão claro, agora, mas estive tão frustrada! A ilha toda sabia, não?
– Não a ilha toda – respondeu, divertido. – Contei a Michalis e Tracy; tinha que confiar neles, pois são meus amigos. Também contei a outros amigos que você vai conhecer brevemente. Temos uma vida social, dando festas e participando de outras.
– Como os donos do castelo – não pôde deixar de dizer, e Doneus riu.
– A verdade, querida, é que se pega mais depressa um mentiroso do que um coxo...
– Michalis e Tracy estavam querendo me assustar, naquela noite?
– Todos nós estávamos. Pensei que, se acontecesse de você ficar assustada, se perguntaria qual a razão, e esperava que você descobrisse que era o amor que estava nascendo.
– Era amor. Agora sei que era. – Relembrava como o feriram suas palavras a respeito de sentir somente piedade por ele. – Os outros – perguntou rapidamente – devem ter sabido de alguma coisa, pois várias vezes surpreendi olhares curiosos e divertidos; mais a princípio e menos quando me conheceram melhor.
– Somente os fiz saber que queria que você me conhecesse como um simples apanhador de esponjas.
– Para que eu me apaixonasse por um homem pobre? – interrompeu. – Era por esse motivo?
– Não era minha primeira intenção, querida, mas quando você... – Não terminou a frase, tentando mudar o assunto, mas ela concluiu por ele:
–... fui tão orgulhosa e arrogante, você quis me dar uma lição...
– Não exatamente. Eu estava humilhado por você se considerar superior a mim. Foi por uma espécie de compensação que eu quis que você se apaixonasse por um pobre apanhador de esponjas. Houve ocasiões em que eu cheguei quase a lhe revelar a verdade; mas pensando melhor, se, sabendo quem eu era, você viesse a me amar, nunca teria a certeza de que era por mim mesmo.
– Você teria essa certeza, porque eu lhe provaria.
– Sei disso, agora, Julie, mas não sabia naquela época.
Parou, observando Jason, que se preparava para caçar alguma coisa que se mexia. Partiu correndo atrás da caça, seu pêlo dourado brilhando ao sol. Doneus voltou sua atenção para Julie.
– Naquela noite, em que você veio a mim, esperei que fosse mais do que simples atração física e acreditei que a semente do amor estava plantada, e que cumpria a mim desenvolvê-la. Disse-lhe que muito breve saberia de tudo, lembra-se?
– Sim, eu me lembro. Fui tão cega... e teria continuado assim, se não fosse por sua mãe. – Julie ponderou que, nas ocasiões em que ele lhe dissera para ir embora, fora porque, pensando que ela sentia somente piedade, havia decidido desistir dela.
Doneus permaneceu silencioso muito tempo, antes de dizer:
– Julie,.você imagina o quanto devemos a minha mãe? – Foi
como se somente agora tivesse pensado nisso, e sua emoção era visível pelo movimento junto da cicatriz. Julie simplesmente concordou e suavemente acariciou-a, perguntando como acontecera.
– Eu estava mergulhando, carregando uma pedra para apressar minha descida, quando uma correnteza me apanhou e me arrastou. Todo mergulhador conhece certos truques para combater as correntezas, mas nem sempre tem sorte. Como eu disse, fui apanhado, e não sei como a pedra me atingiu, produzindo este horrível corte.
Julie sentiu um aperto na garganta e tremeu, só em pensar no que poderia ter acontecido. Para afastar esses pensamentos, mudou de assunto:
– Sua mãe virá morar conosco. Ela está feliz de ter também uma filha, agora!
– Conseguiu convencê-la?
– Ela pretende consultar os santos primeiro, mas tenho certeza de que eles responderão que é uma boa idéia.
Doneus riu e Jason aproximou-se, levantando uma pata. Pegando-a, Doneus a sacudiu.
– Meu pobre e esquecido companheiro! Culpe sua dona; ela exige toda a minha atenção...
Jason latiu como para assegurar a seu dono que não se importava muito, desde que não fosse de todo esquecido. Veio até Julie. que se abaixou para agradar-lhe a cabeça.
– Tirei você de sua jardinagem...
– Gosta de lidar com plantas?
– Nunca tentei.
– É um ótimo passatempo. De hoje em diante faremos isso juntos.
Sorriu feliz. Onde seu marido estivesse, ela também estaria.
– Os outros jardineiros... Você emprega só mergulhadores?
– Ex-mergulhadores.
– Esse fundo de auxílio é seu, não é?
– Originalmente era de um comerciante de esponjas e muitos de nós pagávamos contribuições. Quando ele morreu, eu assumi o encargo. Você quer contribuir?
– Quero muito. Agora compreendo por que você recusou.
– Pode contribuir com quanto quiser, pois há muitos necessitados na ilha.
– Sim, eu sei, e não somente apanhadores de esponjas. Mas há algum comércio por aqui, não? Reparei nuns veículos de três rodas que passam correndo por mim quando vou à cidade..
– Os ilhéus comerciam entre si, mas o dinheiro vem mais da cata de esponjas. – Olhou para o relógio. – Querida, está na hora de comermos alguma coisa. – Pararam, e Doneus passou-lhe o braço pela cintura. – Venha, vou apresentá-la às criadas. São todas esposas de mergulhadores inválidos e vivem com seus maridos numa parte do castelo. Ficarão felizes ao saber que os donos estão finalmente em casa.
Juntos, caminharam através dos gramados, dirigindo-se para a porta do sul, ambos pensativos. Julie pensava em tudo o que havia sido dito entre eles e em como o destino dera voltas para que ela e seu marido se encontrassem. Parou, olhando-o admirada.
– O destino... é tão estranho, Doneus... – ele assentiu gravemente.
– Muito estranho, minha querida, e dele ninguém foge, por mais que lute. – Passou-lhe novamente o braço pela cintura e recomeçara a caminhar, atravessando os gramados ladeados de lindas flores vermelhas e de arbustos. Ao longe, no oeste, uma pequena ilha flutuava como uma jóia, no liso e brilhante mar, e a leste se elevavam as montanhas de Kalymnos, douradas e nuas contra o céu azul de safira.
– O destino nos reuniu – murmurou Julie – e eu não quero fugir dele nunca...
Doneus parou e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, disse fervorosamente:
– Nunca a deixarei fugir. – Mais uma vez ela reconheceu seu poder, sua força e seu ardor, quando seus lábios procuraram os dela. – Você é minha... minha vida... meu coração... minha mulher... Julie...
Ela sorriu feliz, chegando mais para perto dele, enquanto caminhavam em direção ao castelo. Por que não podia chamá-la de sua mulher? Afinal, ele era o seu homem!


Fim

eu transcrevi  esse livro.  para todas as mulheres que gostem de ler